quarta-feira, 15 de outubro de 2014

08 - UM MEDO DE FAZER CÓCEGAS NA ALMA


O sol despede-se das embarcações enquanto brinca, lá muito ao longe, naquele lugar onde o lago gigante se espreguiça. Este não foi um dia pintado de azuis, ao contrário dos últimos. Álvaro encarregou-se de o agitar. O seu feito inusitado trouxe de volta os ventos e devolveu alguma tranquilidade aos homens e ao comandante. Os marinheiros passaram dias encerrados em silêncios, dias sem brisas e sem correntes, apenas na companhia de um sol impiedoso e do mar mais sereno de que há memória. As naus repousaram no maior de todos os espelhos em cujas águas cristalinas o céu inteiro se encontrava refletido. Um perfeito azul celeste pintou as embarcações e a alma dos marinheiros, um azul inebriante, intoxicante, talvez o mais belo de todos os azuis. A cor alastrou-se pelos bordos dos navios até às amuradas, avançou pelos castelos da proa, tomou conta dos cabos, tomou conta dos lemes, avançou pelos tombadilhos, subiu aos cestos da gávea, aos mastros, isto depois de ter colorido todo o comprimento dos convés. As armas foram tomadas de assalto pelo poder misterioso desse intenso tom de azul que embelezou as âncoras e os escaleres e subiu, sem hesitar, até às velas dos  navios. Desde a ré à vante, tudo brilhava num azul intenso que tinha tanto de marinho como de celeste.
Deixámos de vislumbrar os lugares onde se encontravam as embarcações. Perdemos o norte, o sul, perdemos o bombordo e o estibordo, perdemos a noção de quem éramos. Permanecemos ali em sossego a presenciar o raro fenómeno que nos transformou. Olhávamos espantados uns para os outros questionando-nos acerca da surpreendente magia da natureza. Ninguém alguma vez presenciara um caso assim com tais contornos de estranheza. Tudo ficou azul menos os homens. Tudo era azul, numa confusão de céu, de mar, de embarcações. Tudo estava pintado da mesma cor, com o mesmo brilho e tonalidade. Os mantimentos e toda a demais carga acumulada nas grandes barrigas dos navios foram realçados com azuis iguais aos outros perdendo-se o seu rasto. Os companheiros pareciam levitar sobre o oceano, suspensos em barcaças invisíveis perdidas em alto mar. Ninguém se atrevia a dizer uma única palavra pois o pasmo tomou-nos de assalto e o medo entretinha-se a fazer-nos cócegas na alma. Até a morte, que antes sorria, desapareceu sem deixar rasto. O azul não é uma cor do seu agrado. Esse foi o único momento de alívio desde que a cor conquistou todos os espaços percetíveis. Avançávamos com todos os cuidados, às apalpadelas, fazendo pressão com as pernas e os pés para melhor sentirmos o chão.
Tudo azul, tal como o mar, tal como o céu, e assim tudo ficou nos três longos dias de acalmia, até que resolvi agitar as águas, os ventos e as marés. Tive de fazer a vontade ao mar para tentar repor a ordem das coisas. Tive de agitar as águas, acordar os companheiros e tentar recolocar as naus na rota destinada. O mar chamou por mim, e cheirava tão bem.
- Foi o mar, meu capitão! O seu chamamento irresistível fez com que eu saltasse. Não consegui evitá-lo, era só nisso que eu pensava. Foi o mar e aquele azul intenso que nos cobriu as naus e enlouqueceu os dias, meu capitão! Enquanto muitos de nós descansavam do cansaço provocado pela grande calmaria, o grande lago chamou por mim. Saltei sem vacilar, acreditei sinceramente que se não o fizesse as brisas e as correntes favoráveis jamais regressariam. Saltei para me salvar, saltei para ajudar as nossas naus a derrotar as forças invisíveis que nos imobilizaram. Fosse ilusão ou realidade, meu capitão, o certo é que os ventos regressaram e são-nos muito favoráveis. As correntes levam-nos agora na direção desejada e tudo regressou à normalidade. Repare como os navios ganharam de volta as suas cores originais e as velas se engalanaram, de novo, sopradas por estes ventos de feição. Fosse ilusão ou realidade, o certo é que antes do meu ato imprudente isto que agora experimentamos mais não era do que uma miragem por todos ambicionada. Fosse ilusão ou realidade…
Álvaro sorri. Está encharcado até aos ossos, até à medula, encharcado mas feliz. Eis que a viagem recomeça após dias de intensa acalmia e após ter sucedido um fenómeno singular que pintou de azul as embarcações tornando-as virtualmente invisíveis. Nenhum marinheiro ousa tocar nesse assunto, ninguém pretende recordar o estranho acontecimento. Coisas assim não podem existir neste mundo. Coisas assim tão inexplicáveis, melhor é que fiquem encarceradas nas celas de todos os esquecimentos.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

07 - ESTA VIDA É UMA BATALHA



No fundo do grande lago descubro, com espanto, uma cidade com ruas estreitas onde treinam guerreiros destemidos e onde se pratica o comércio entre povos de muitas proveniências. As vielas estão iluminadas por estranhos archotes que conseguem brilhar debaixo de água. Numa dessas ruelas apertadas ocorre um concerto magistral com mais de uma dezena de instrumentistas que tocam pequenas flautas de osso de onde nascem acordes harmoniosos.
É tão bonito o fundo deste mar, mas se eu arriscar permanecer por aqui, a morte chegará para me levar. Para lá desta cidade existem densas florestas marinhas que dificultam o meu avançar. Aqui em baixo nada é aquilo que parece! Termina o belo concerto e eu ouço alguns clamores. Talvez pertençam às estátuas de pedra que aqui vim procurar. Vozes lamuriosas substituem a bonita música que já não se escuta.
Não sei o que pisam os meus pés. Credo! Agora entendo! Tenho as pernas cobertas por polvos que as começam a apertar. O fundo do lago está a tornar-se cada vez mais escuro, com depressões e cavernas escavadas em rochas negras, imensas, e muitas grutas que mais não são do que armadilhas. No seu interior consigo vislumbrar cofres que escondem tesouros tão brilhantes quanto enganadores. Volto atrás, regresso à entrada da cidade subterrânea onde aparece uma enorme escadaria que sobe até um templo habitado pelo medo. No interior dessa estranha construção vive a rainha deste reino subaquático que é governado com mão de ferro. Eis a rainha guerreira, mulher negra e invisível. Eis a mulher que se esconde dentro de uma sublime estátua de pedra lisa da cor do ébano. É uma estátua tão bela e tão mentirosa quanto os tesouros que encontrei. A Nereide é graciosa, é esbelta, gosta de seduzir e sentir-se seduzida, e alicia-me com a sua elegância e volúpia. É por esta altura que os meus companheiros de jornada me socorrem e tentam resgatar. Sem essa ajuda eu dificilmente teria resistido aos seus encantos. O número de habitantes da cidade aumentou significativamente ao longo da minha visita tornando agora quase impossível a travessia destas ruas e vielas. Também os guerreiros deste mar parecem interessados em impedir o meu regresso, e lutam com os camaradas que vieram em meu auxílio. As águas escuras do oceano tornam-se claras e cristalinas quando uma estátua de guerreiro de cor vermelha ordena que as minhas memórias me sejam devolvidas, e que delas não se apague nenhum dos momentos que já vivi. Os meus colegas continuam a lutar contra o tempo e as correntes, e já falta pouco para me salvarem. O capitão não pretendia perder muito tempo nesta missão de salvamento, mas a minha vida e a força dos meus braços são bens preciosos demais para o que resta da longa viagem.
Descanso no fundo da enorme escadaria depois de quase ter cedido à tentação da belíssima Nereide, rainha deste mar. Descanso no fundo da enorme escadaria e acordo, a tossir de dor, a cuspir, a vomitar litros de água salgada no chão do imenso convés da nau São Gabriel.
Esta vida é uma batalha, é a minha eterna disputa, uma existência que só agora começou!

sábado, 11 de outubro de 2014

06 - HOMEM AO MAR


São tão azuis estes caminhos que seguimos. Desejo conhecê-los melhor, mesmo sabendo que escondem perigos desmedidos de dificílima perceção. Entretenho-me a imaginar todo o tipo de peripécias que teremos de enfrentar, e delas arrecado, sem cautelas, as mais fantásticas imagens que depois uso para conseguir ultrapassar a monotonia dos meus dias. Este mar imenso que se avizinha é um gigante sensível e familiar em quem posso confiar. Comunico com ele através de palavras simples e pensamentos singelos, ele responde-me através de estranhas palavras sopradas por brisas sorridentes que nunca se repetem. Inventa orações peculiares que reserva apenas para as nossas conversas e seduz-me com a beleza natural dessas mensagens. As grandes velas da nau estão refletidas nas águas cristalinas do grande lago. Hoje apresenta-se tranquilo e harmonioso. Dias assim amenizam a saudade e todos os receios dos homens. De nada vale tentar lutar contra as forças deste companheiro de viagem. Tem como aliadas a solidão, as marés, as ondas, os ventos e as tempestades que por estas paragens sopram atiçadas. Prefiro ver nele um gigante que me alegra, tal como acontece quando o dia nasce. Sinto que ele me vê e respeita, sei que ele me vê e respeita. Não gosto quando o mar se apresenta tão calmo ao ponto de entorpecer as ondas e os ânimos. Tanta dolência inquieta-me, impede o meu raciocínio. Sou marinheiro de tormentas, com elas desperto, no meio delas tudo ganha novas cores. Este é o gigante que me transformou, e eu transformei-me a observar o gigante. As águas do grande lago moldaram-me os desejos, é aqui que me reconheço. Somos tão pequenos nas costas do colosso, pequenos com fé de gigantes. Quem sabe se esta empreitada não será para sempre recordada. Habitamos pequenas naus feitas de sonhos, largadas aos ventos, sopradas pela vontade de deuses a quem agradecemos boas marés, melhores brisas e correntes amistosas.
A morte gosta de nos visitar nestes dias tormentosos quando faltam tantos meses e tanto mar para navegar. Vislumbro nas águas do lago que não se enternece as palavras exatas que me permitem continuar a acreditar. O oceano transformou-me, fui capaz de o entender e agora confio, mais do que nunca, que esta será uma viagem de verdadeiros descobrimentos. Observo o lago imenso que permanece há três dias silencioso e agora me convida a entrar. Que segredos esconderá este gigante azul? Se os conseguir interpretar, quem sabe se as muitas estátuas que nele se escondem não sairão do seu profundo estado de dormência para nos vir conhecer. O mar volta a chamar-me, e cheira tão bem. Inebria-me tanta tranquilidade. Os companheiros descansam, abandonaram os corpos por tudo o que é navio. Transformaram esta nau de velas murchas num cargueiro fantasma sem vento que o empurre. Imagino como seria se conseguíssemos fazer mergulhar o barco. Com tal proeza seria bem mais fácil ir ao encontro dos lugares secretos das cidadelas aquáticas onde habitam as estátuas. O mar chama por mim, de novo, e reconheço-lhe todos os odores.
Álvaro atira-se à água do lago. Sente que, naquele instante, é a escolha mais acertada. O ato não carece de nenhuma explicação, e ele faz a vontade ao mar. Álvaro lança-se ao oceano no último dia de acalmia, porque a vida de marinheiro é mesmo assim, nada acontece conforme planeado. O amigo recebe-o com alegria, de braços abertos e salgados, em pequenas ondas de espuma branca que começam a cantar. A nau afasta-se, foge para longe, misteriosamente, soprada por um vento ligeiro que regressou para a embalar. Os companheiros, que entretanto acordaram, descobrem-no e logo gritam de aflição:
- HOMEM AO MAR, HOMEM AO MAR…Capitão, meu capitão, um marinheiro saltou do convés, mas de maneira alguma foi acidente! Eu vi, eu vi tudo! Só um acometimento de loucura terá forçado o imbecil a cometer tal façanha em alto mar.
Álvaro nunca tinha sentido assim, com tanta intensidade, aquela admirável forma de cansaço. Resoluto, subiu com destreza à amurada, resolveu seguir o conselho do velho amigo, e mergulhou.