No fundo do grande lago descubro, com espanto, uma
cidade com ruas estreitas onde treinam guerreiros destemidos e onde se pratica
o comércio entre povos de muitas proveniências. As vielas estão iluminadas por
estranhos archotes que conseguem brilhar debaixo de água. Numa dessas ruelas
apertadas ocorre um concerto magistral com mais de uma dezena de
instrumentistas que tocam pequenas flautas de osso de onde nascem acordes
harmoniosos.
É tão bonito o fundo deste mar, mas se eu arriscar
permanecer por aqui, a morte chegará para me levar. Para lá desta cidade
existem densas florestas marinhas que dificultam o meu avançar. Aqui em baixo
nada é aquilo que parece! Termina o belo concerto e eu ouço alguns clamores.
Talvez pertençam às estátuas de pedra que aqui vim procurar. Vozes lamuriosas
substituem a bonita música que já não se escuta.
Não sei o que pisam os meus pés. Credo! Agora
entendo! Tenho as pernas cobertas por polvos que as começam a apertar. O fundo
do lago está a tornar-se cada vez mais escuro, com depressões e cavernas
escavadas em rochas negras, imensas, e muitas grutas que mais não são do que
armadilhas. No seu interior consigo vislumbrar cofres que escondem tesouros tão
brilhantes quanto enganadores. Volto atrás, regresso à entrada da cidade
subterrânea onde aparece uma enorme escadaria que sobe até um templo habitado
pelo medo. No interior dessa estranha construção vive a rainha deste reino
subaquático que é governado com mão de ferro. Eis a rainha guerreira, mulher
negra e invisível. Eis a mulher que se esconde dentro de uma sublime estátua de
pedra lisa da cor do ébano. É uma estátua tão bela e tão mentirosa quanto os
tesouros que encontrei. A Nereide é graciosa, é esbelta, gosta de seduzir e
sentir-se seduzida, e alicia-me com a sua elegância e volúpia. É por esta altura
que os meus companheiros de jornada me socorrem e tentam resgatar. Sem essa
ajuda eu dificilmente teria resistido aos seus encantos. O número de habitantes
da cidade aumentou significativamente ao longo da minha visita tornando agora quase
impossível a travessia destas ruas e vielas. Também os guerreiros deste mar
parecem interessados em impedir o meu regresso, e lutam com os camaradas que
vieram em meu auxílio. As águas escuras do oceano tornam-se claras e
cristalinas quando uma estátua de guerreiro de cor vermelha ordena que as
minhas memórias me sejam devolvidas, e que delas não se apague nenhum dos
momentos que já vivi. Os meus colegas continuam a lutar contra o tempo e as
correntes, e já falta pouco para me salvarem. O capitão não pretendia perder muito
tempo nesta missão de salvamento, mas a minha vida e a força dos meus braços
são bens preciosos demais para o que resta da longa viagem.
Descanso no fundo da enorme escadaria depois de
quase ter cedido à tentação da belíssima Nereide, rainha deste mar. Descanso no
fundo da enorme escadaria e acordo, a tossir de dor, a cuspir, a vomitar litros
de água salgada no chão do imenso convés da nau São Gabriel.
Esta vida é uma batalha, é a minha eterna disputa, uma
existência que só agora começou!
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