sábado, 11 de outubro de 2014

06 - HOMEM AO MAR


São tão azuis estes caminhos que seguimos. Desejo conhecê-los melhor, mesmo sabendo que escondem perigos desmedidos de dificílima perceção. Entretenho-me a imaginar todo o tipo de peripécias que teremos de enfrentar, e delas arrecado, sem cautelas, as mais fantásticas imagens que depois uso para conseguir ultrapassar a monotonia dos meus dias. Este mar imenso que se avizinha é um gigante sensível e familiar em quem posso confiar. Comunico com ele através de palavras simples e pensamentos singelos, ele responde-me através de estranhas palavras sopradas por brisas sorridentes que nunca se repetem. Inventa orações peculiares que reserva apenas para as nossas conversas e seduz-me com a beleza natural dessas mensagens. As grandes velas da nau estão refletidas nas águas cristalinas do grande lago. Hoje apresenta-se tranquilo e harmonioso. Dias assim amenizam a saudade e todos os receios dos homens. De nada vale tentar lutar contra as forças deste companheiro de viagem. Tem como aliadas a solidão, as marés, as ondas, os ventos e as tempestades que por estas paragens sopram atiçadas. Prefiro ver nele um gigante que me alegra, tal como acontece quando o dia nasce. Sinto que ele me vê e respeita, sei que ele me vê e respeita. Não gosto quando o mar se apresenta tão calmo ao ponto de entorpecer as ondas e os ânimos. Tanta dolência inquieta-me, impede o meu raciocínio. Sou marinheiro de tormentas, com elas desperto, no meio delas tudo ganha novas cores. Este é o gigante que me transformou, e eu transformei-me a observar o gigante. As águas do grande lago moldaram-me os desejos, é aqui que me reconheço. Somos tão pequenos nas costas do colosso, pequenos com fé de gigantes. Quem sabe se esta empreitada não será para sempre recordada. Habitamos pequenas naus feitas de sonhos, largadas aos ventos, sopradas pela vontade de deuses a quem agradecemos boas marés, melhores brisas e correntes amistosas.
A morte gosta de nos visitar nestes dias tormentosos quando faltam tantos meses e tanto mar para navegar. Vislumbro nas águas do lago que não se enternece as palavras exatas que me permitem continuar a acreditar. O oceano transformou-me, fui capaz de o entender e agora confio, mais do que nunca, que esta será uma viagem de verdadeiros descobrimentos. Observo o lago imenso que permanece há três dias silencioso e agora me convida a entrar. Que segredos esconderá este gigante azul? Se os conseguir interpretar, quem sabe se as muitas estátuas que nele se escondem não sairão do seu profundo estado de dormência para nos vir conhecer. O mar volta a chamar-me, e cheira tão bem. Inebria-me tanta tranquilidade. Os companheiros descansam, abandonaram os corpos por tudo o que é navio. Transformaram esta nau de velas murchas num cargueiro fantasma sem vento que o empurre. Imagino como seria se conseguíssemos fazer mergulhar o barco. Com tal proeza seria bem mais fácil ir ao encontro dos lugares secretos das cidadelas aquáticas onde habitam as estátuas. O mar chama por mim, de novo, e reconheço-lhe todos os odores.
Álvaro atira-se à água do lago. Sente que, naquele instante, é a escolha mais acertada. O ato não carece de nenhuma explicação, e ele faz a vontade ao mar. Álvaro lança-se ao oceano no último dia de acalmia, porque a vida de marinheiro é mesmo assim, nada acontece conforme planeado. O amigo recebe-o com alegria, de braços abertos e salgados, em pequenas ondas de espuma branca que começam a cantar. A nau afasta-se, foge para longe, misteriosamente, soprada por um vento ligeiro que regressou para a embalar. Os companheiros, que entretanto acordaram, descobrem-no e logo gritam de aflição:
- HOMEM AO MAR, HOMEM AO MAR…Capitão, meu capitão, um marinheiro saltou do convés, mas de maneira alguma foi acidente! Eu vi, eu vi tudo! Só um acometimento de loucura terá forçado o imbecil a cometer tal façanha em alto mar.
Álvaro nunca tinha sentido assim, com tanta intensidade, aquela admirável forma de cansaço. Resoluto, subiu com destreza à amurada, resolveu seguir o conselho do velho amigo, e mergulhou.


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