quarta-feira, 25 de março de 2015

70 - SANGUE


O sangue delimitou um espaço reduzido onde, em segredo, os ossos e a carne dilacerada se despediram entregando-se à terra por debaixo de um sol envergonhado. Os prados outrora verdes e felizes, pintaram-se de cinzentos e de esquecimento, dissolvendo-se em seguida. Adelaide era a pétala caída de uma existência construída sem um único poema. Os homens morreram, Álvaro foi o último a partir antes do sol se esconder. A casa tinha-se desfeito em poeiras de coisa nenhuma, e até as ondas do mar ficaram mais fracas desde esse dia. O sal que o navegador carregava consigo tomou conta das janelas, das portas, do teto, das paredes e do soalho da habitação. Ela rangeu várias vezes, como rangem os dentes e os ossos, e a voz do marinheiro perdeu-se em delírios próprios de quem sofreu os horrores da doença maldita que o vitimou.
O sol despediu-se ao longe, pintando o céu com cores há muito esquecidas.
- A vida é toda feita de mentiras, é a maior das falsidades! – gritou Adelaide antes de se refugiar num silêncio apaziguador.
Alguns animais selvagens vieram ter com ela, lobos famintos desceram as encostas para lhe fazer companhia. A esperança nunca lhe tinha faltado até esse dia em que a casa ruiu. O irmão morreu, e Adelaide tombou, cedendo ao desespero e à dor lancinante que a martirizou. Cancelou de uma só vez todos os sonhos, entregando-se àquele sofrimento imenso que quase a aniquilou.

terça-feira, 24 de março de 2015

69 - ESCURIDÃO


As raízes que ali cresceram e se multiplicaram, penetrantes, longas, sedentas de água e de húmus, afligiram-se  com o estrondo provocado pelo desabamento e com a escuridão que envolveu o lugar. As luzes das velas apagaram-se momentos antes da derrocada, e memória alguma lhe terá resistido.
Álvaro morreu! Dona morte bateu-lhe à porta, arrasou tudo à sua passagem. A carruagem invisível reclamou, finalmente, a alma do navegador.
Adelaide olhou o horizonte longínquo, aquela linha que separa a terra do céu e que não se distingue no mar oceano, só aqui. O vento e o frio incomodaram até as raízes mais profundas e envelhecidas que ficaram húmidas e negras. Um silêncio sepulcral abraçou o lugar numa espécie de pesadelo trágico e solitário que a enlouqueceu. A doença atroz cavalgou pelo irmão, e presto o levou. Nuvens escuras contaram as suas histórias falseando a realidade, pois a vida é uma mentira, é a maior de todas as falsidades. O irmão partiu pouco tempo depois de ter regressado ao ponto de partida, àquele vazio que depressa chegou e onde pouco ou nada aconteceu. Voltou para vestir vestes negras, ingratas e cruéis, e a irmã teve dificuldade em o reconhecer.

domingo, 22 de março de 2015

68 - POSEÍDON E ANFITRITE


Os olhos penetrantes do marinheiro falam a cantar, mergulhados nestas águas profundas onde mulheres-manta dançam como pássaros. Aqui em baixo a espuma das ondas adocica a paisagem citadina onde as casas iluminadas possuem janelas espelhadas. Estátuas de guerreiros apontam grandes fachos junto à muralha branca do palácio que brilha em toda a sua glória.
- A capital de meu reino encontra-se imaculada pois tem de estar sempre pronta a receber aqueles que o mar derrotou. Chegam silenciosos, em corpos já de pedra, e aqui são depositados, mas ainda experimentam levantar os olhos aflitos, numa última tentativa de comunicar uns com os outros. As minhas filhas e os meus soldados esmeram-se na realização das tarefas, mas contigo as coisas aconteceram de maneira muito diferente dos demais. Tu deslizaste sorrateiramente até os meus aposentos daquela primeira vez, coisa que nenhum mortal tinha conseguido fazer. Aqui só chegam estátuas, depois de muitas ajudas, e jamais humanas formas de gente. Enfrentaste o mar, perscrutaste os seus segredos, decifraste códigos milenares com essa coragem tão natural que em ti cresceu, e vieste dar a minha casa. Quando te vi, mal pude acreditar. Olhei para a porta entreaberta e reparei na tua silhueta. Ali estavas, com um sorriso rasgado, a aquecer a esperança em conseguires salvar os teus companheiros. Eu não te levei a mal, pensei que serias alguém como nós, alguém que tinha sido capaz de nadar, desordeiro, até encontrar o meu palácio no centro da capital. Cresci para ti, e quase te queimei a vista. Mergulhaste para alimentar essa vontade própria dos heróis, e uma melodia que eu quase esquecera voltou a ser tocada pelas ruas da cidade, amolecendo o meu coração. Depois, deves ter escutado as vozes dos teus camaradas a chamar por ti, pois bem depressa voltaste a desaparecer.
A cidade está enfeitada com cordéis de flores marinhas, brancas e amarelas, que embelezam todas as ruas, largos, becos e avenidas. Soldados cor de coral delimitam os passeios decorados no centro da capital do reino, onde uma grande praça com três gigantescas fontes ornamentais serve de palco a um improvável espetáculo. Luzes cerúleas abraçam-nas assim como aos grupos de estátuas belíssimas que as compõem. Tocadoras de harpas e de trompetas estão misturadas com estátuas fantásticas representando deuses do Olimpo, sendo difícil despregar os olhos deste magnífico grupo de esculturas que se encontra reunido em cada um dos três fontanários. Aqui não existem estátuas de marinheiros. São vários conjuntos de deuses de pedra, acompanhados por animais mitológicos, que aqui estão representados, com os corpos entrelaçados, e num deles destacam-se duas sublimes figuras esculpidas em pedra negra. Uma das estátuas é a representação fiel da rainha deste lugar, e todos os adornos e peças de vestuário que a cobrem estão representados num dourado resplandecente que contrasta maravilhosamente com a pele escura e sedosa da monarca, sentada numa magnífica carruagem.
A outra figura é Poseídon, poderoso rei dos mares.
As duas estátuas brilham sobre as águas azuladas das grandes fontes, perante o olhar incrédulo do marinheiro.

quinta-feira, 19 de março de 2015

67 - VISITA INESPERADA


Dona morte não se cansa de espalhar o medo e o horror. O cheiro nauseabundo é o emissário que anuncia a sua chegada.
Álvaro sentia-se febril, mas apercebeu-se do ruído dos passos da dama de negro, e cheirou aquele odor tão particular. Conheceu-a desde que se fez ao mar pela primeira vez e aprendeu a lidar com a solidão, datando o tempo que custava a passar.
- Não fazias cá falta nenhuma! – vociferou, com a testa a arder de febre – Não conheces outra forma de trabalhar? Pensas que me atormentas e que tudo de mal que nos acontece é da tua inteira responsabilidade, mas enganas-te! O que tu gostas é de te sentir importante, quase uma deusa, mas os verdadeiros deuses moram em lugares que te são vedados, e jamais te convocarão. Persegues-nos porque somos simples mortais. Eu sei que o meu fim não está distante e já o anseio. Chegaste depressa desde o outro lado do oceano onde te entreténs a perseguir os navegadores para lhes atormentar o futuro.
Dona morte cheirava a terra lamacenta, a humidade, a ossos e a todas as maleitas que pintam de verde os rostos dos enfermos. Foi com facilidade que ali chegou, virou-se para Álvaro e tocou-lhe no ombro com a mão direita, manchando-lhe a camisa com uma nódoa de sangue. Ao fazê-lo, ficou a conhecer a história da sua vida, e o marinheiro não conseguiu evitar um súbito ataque de cólera. Tentou estrangulá-la através de gestos desesperados, com o olhar fixo num lugar vazio da parede do quarto onde dormia.
Olá! – disse dona morte, sorrindo, protegida pela sua invisibilidade – Esta não será a minha última visita pois gosto muito de escutar a tua voz desesperada. Os destinos de todos os humanos cruzam-se comigo, mais cedo ou mais tarde, e eu a todos concedo, pelo menos, uns segundos de atenção. Alguns, como tu, não fluem ao acaso. Dá-me um grande prazer desesperá-los, nem consigo quantificar a alegria que esses momentos me proporcionam, tão doces eles são. Sei que estás preparado para abalar, e antecipas os confortos dessa última jornada, mas ainda é cedo. Vim até aqui revigorar-me, pois este tem sido um passeio que pratico com imensa satisfação.
O marinheiro apenas conseguia ver imagens dantescas e distorcidas, e escutar esta voz sibilante que tanto o incomodava. Quando isto acontecia, o tempo corria vagaroso, e ele ficava com uns olhos inexpressivos a transpirar imenso.
Adelaide já previa o resultado da contenda. A doença do irmão tinha-lhe roubado a sanidade e ele vivia alheado da realidade terrena em busca de uma razão para existir.
 

terça-feira, 17 de março de 2015

66 - OITO ANOS NESSE DIA


Naquele dia, Adelaide não encontrou o irmão. O rapaz tinha saído bem cedo pela manhã, para que ninguém o impedisse de ir até ao ribeiro. Corria sempre até lá, sozinho, e nunca mencionou a existência daquele “seu” lugar secreto, nem mesmo à irmã, apesar de ela conhecer muito bem a sua localização. Álvaro regressou ao fim da tarde, completamente encharcado, com a roupa colada ao corpo. Riu-se, nervoso, como um tolinho, temendo que a irmã lhe fosse colar a mão à cara como o pai fazia. Os dois ficaram ali a olhar um para o outro, sem se mexerem, em silêncio, até a madeira do soalho ficar tão molhada como os pés e as pernas e todo o menino, que se manteve quieto, com medo do que a irmã lhe pudesse fazer.
- Álvaro, olha bem para ti, miúdo! – disse Adelaide, com a sua voz doce e melodiosa – Vem comigo, tens a roupa toda ensopada e vais ter de te despir. Anda, chega aqui para te aqueceres perto do lume, antes que te constipes.
Lá fora o mundo tinha parado, as ramagens pararam de balançar, o vento já não soprava. Adelaide cresceu depressa e cedo se habituou a pensar e a tratar dos homens da casa. Os dois avançaram até bem perto da lareira da cozinha onde as chamas crepitavam e o calor se fazia sentir. A luz das labaredas tremeluziam e faziam luzir a pedra escura de granito junto à qual Álvaro se começou a enxugar.
- Come! – disse Adelaide, oferecendo-lhe um naco de broa que tinha acabado de cortar – Tinha quase a certeza de que tinhas ido até esse “teu” lugar preferido. Passas tanto tempo a olhar para o ribeiro, a lançar-lhe pedras e a bater com os pés na água, que qualquer dia até te vais esquecer de regressar.
O rapazinho estava agachado pertinho do lume onde o fogo dançava. Segurou o pão e trincou-o de imediato, com a água a escorrer-lhe pelos cabelos abaixo. Fazia oito anos nesse dia.

segunda-feira, 16 de março de 2015

65 - NEVE VERMELHA


As luzes da grande muralha delineiam-lhe formas retangulares e curvilíneas enquanto várias sombras prendem a vista ao projetarem-se no paredão que se estende muito para lá do que a vista consegue alcançar.
As habitações são nobres e parecem ter sido acabadas de construir, assim como os torreões descomunais que se elevam por toda a parte, elegantes e cilíndricos, com belos telhados cónicos. Não há ninguém a passear pelas ruas da cidade, apenas cardumes de peixes de diversas espécies vão nadando, de um lado para o outro, aproximando-se deles de quando em vez. Estátuas de guerreiros encontram-se enfileiradas, em poses rígidas, ao longo das escadarias que ligam as ruas, pracetas, largos e avenidas. Possuem braços fortes e armados com espadas, lanças e escudos, e as cabeças estão protegidas por elmos extraordinários. Muitos destes soldados estão despidos, calçam sandálias altas que lhes chegam aos joelhos, e alguns deles elevam fachos e dão a sensação de alguém os ter transformado em estátua enquanto corriam.
Numa das ruas por debaixo do lugar onde passam, existe um canal de águas luminosas que brilham em tons de anil. Pontes de mármore atravessam-no ligando as margens onde se encontram plantadas centenas de árvores de pedra branca trabalhadas com um rendilhado tão fino e delicado que imita, na perfeição, geadas das manhãs de inverno. Peixes de várias cores e tonalidades repousam nos ramos e na folhagem bailando e saltitando entre elas, alegremente.
Uma quantidade fabulosa de pérolas e de corais enfeitam o topo dos edifícios mais nobres e mais altos da cidade, no interior do grande muro. Alguns corais de um vermelho intenso desprendem-se, de quando em vez, formando flocos vibrantes que viajam até outros telhados ao serem batidos por correntes marinhas que os fazem bailar como cristais de neve rubra.
O mar pintado destas cores é um espetáculo magnífico e os olhos do marinheiro não param de saltitar.
Os pequenos pedaços vermelhos atingem-nos e colam-se de imediato ao manto sedoso da rainha e às costas de Álvaro, que encolhe os ombros ao senti-lo.
- Eu nunca me canso de observar este bonito espetáculo, e passo horas a observar a paisagem quando neva. Tiveste muita sorte pois hoje as condições no fundo do grande lago proporcionaram a rara oportunidade de poder nevar.
Os peixes coloridos nadam por entre os ramos das árvores e alguns deles sobem para os vir cumprimentar. Álvaro julga estar a viver dentro do mais improvável dos sonhos, um ao qual não devia pertencer. O passeio por esta terra de deuses marinhos tem sido deslumbrante, e tem ajudado o marinheiro a recuperar as suas forças.
Sem a ajuda corajosa e preciosa do abnegado navegador, no mundo das coisas terrenas, os companheiros já não existiriam nem lutariam para não naufragar. Lá em cima, eles conseguem, de novo, vislumbrar a luz de uma lua milagrosa que os faz acreditar. Estão divididos entre medos e sorrisos, húmidos de sal e de suor e lágrimas de contentamento. A madrugada foi ficando mais plácida, e as ondas acalmaram ao ponto de encantarem a escuridão com o som esperançoso de um mar menos castigador.
- O teu pai também conhecia estes lugares. Quando aqui chegou, cheirava a madeiras exóticas e a lodo, e eu tive muita pena do que os tubarões lhe fizeram. David estava muito ferido, ao contrário de ti. Rastejava numa mancha avermelhada a perguntar pelos teus irmãos, que eu nunca vi. Os animais comeram-lhe metade de um braço e outro tanto de uma perna, afastando-se depois, sem olhar para trás. Ele teve a mesma ideia que tu, e abriu os braços, feito pássaro, para mergulhar no mar. O resto tu sabes como aconteceu, foi tudo igual à viagem que fizeste, exceto quando o ardiloso tubarão apareceu. O animal foi bem mais feroz e não atacou sozinho. Feriram-no sem apelo, causando-lhe ferimentos mortais.
Sedna parou de nadar. Está sentada no topo da muralha, junto a um telhado antigo, a olhar para o navegador.
- Nós existimos, mas não para sempre. Há momentos em que nos sentimos felizes, alguns bem para lá do que é normal, mas não são particularmente duradouros. E rimos por tudo e por nada quando nos sentimos assim. E no meio da tristeza e da melancolia, a certeza de que estes flocos de neve vermelha só podem ter existência num qualquer sonho de alguém muito feliz. Quem me dera que fosse assim. – diz o marinheiro a olhar a imensidão branca do fundo do grande lago oceano.

sábado, 14 de março de 2015

64 - UM MAR COR DE ESMERALDA


- Olá! – diz-lhe Iemanjá, estendendo a mão ao viajante – Não te preocupes, não tens nada com que preocupar.
Atrás dela, as torres das muralhas da cidade brilham como faróis. Tiamet flutua, paira nas águas como uma gaivota batida pelo vento quente do final de uma tarde de verão. O mar, por cima de Álvaro, é de um verde esmeralda imaculado. O marinheiro pensa em coisas improváveis, segredos que tinham permanecido esquecidos em memórias distantes, mas o que ele desejava mesmo era poder descobrir o pai e os irmãos.
- Vem, dá-me a mão, fiquei contente com o teu regresso e vou mostrar-te a capital do meu reino. Deves estar ansioso por visitá-la.
Sedna puxa-o para o ajudar a saltar para cima do seu grande manto de seda, num movimento que parece ter sido ensaiado pelos dois. Ao fazê-lo, Álvaro provoca um pequeno turbilhão de finos grãos de areia branca, e acaba deitado junto à cabeça da rainha, que permaneceu atenta a todos os movimentos. Antes de começarem o passeio, o grande portão abre-se com enorme facilidade mostrando a cidade iluminada em todo o seu esplendor.

sexta-feira, 13 de março de 2015

63 - ESPERANÇA


Álvaro não consegue afastar os olhos da rainha de ébano. Ainda mal abriu os olhos, mas é difícil não dar conta de Sedna, pois ela brilha como um sol. Ma-Tsu ajeita as vestes imensas, e decide conversar com o navegante:
- Tenho algo de muito importante para te dizer. Gosto de ti, marinheiro, és diferente e eu reparei nisso mal aqui chegaste. Foi-te fácil encontrares o caminho, ao contrário dos outros que antes de ti o tentaram fazer. Resolvi conceder-te aquilo que aqui vieste procurar, por isso podes deixar de te preocupar. A tempestade que se abateu sobre os navios parou de crescer.
Álvaro tem o mesmo corpo magro do pai David. Os dois foram moldados pelos marítimos trajetos e as súbitas tormentas. Contorce-se, faz força nas pernas franzinas, surpreendido com as palavras da rainha, surpreendido por estar vivo. Apesar de muito fraco, tenta dar uns passos. Abre os braços, desfralda esses membros vigorosos para melhor se equilibrar. Contente com a sua frágil condição humana, solta-se, corre, cambaleia, e fá-lo de cabeça erguida no mar profundo. O sangue flui nas veias, os olhos brilham de novo, a voz regressa, angustiada e rouca. As mantas cruzam-se com ele, parecem acenar-lhe, passam-lhe rente ao peito e às costas e à cabeça, reconhecem e validam a sua transformação.
As duas jovens mulheres observam-no, afastadas à distância de um olhar. O viajante franzino terá de ser paciente se quiser recuperar as forças. A razão pela qual Tetis o escolheu não é um mistério. Este marinheiro magro, de olhos negros marcados por olheiras profundas, cedo lhe chamou a atenção. Há nele qualquer coisa de diferente capaz de lhe espicaçar a curiosidade.
Fora do pedestal, o peso de Álvaro diminuiu. Aquela inércia limitativa tornou-se verdadeiramente insuportável mas ajudou-o a compreender a falta que lhe fazem os sentidos.
Cecília e a irmã aproximam-se, obedecendo às ordens da mãe.
- O que acham, meninas? Parece-vos que o marinheiro já reaprendeu a mandar em si? – pergunta Sedna às duas filhas.
Cecília aproveita a ocasião para lhe dar uma grande novidade:
- Estou à espera de bebé – informa, feliz e ansiosa.
O coração da mãe bate mais depressa, e uma onda gigantesca nasce do outro lado do oceano.
- Foste incapaz de lhe resistir mal deixaste de ser estátua. De ti transbordou essa vontade imensa de voltares a sentir-te mulher. Tal anseio não pode nem deve ser encarado como um sinal de fraqueza. A tua pele permaneceu gelada tempo demais. Ele chegou para te aquecer, e tudo se propiciou e se arrepiou em vós dentro do planeta de estátuas. Não podias resistir, ele não te podia resistir. O homem e a mulher foram construídos para se aproximarem, receberem e amarem, e no final regressam à mesma casa que os viu nascer. É a ordem natural das coisas.
Álvaro continua o passeio pela areia fina, branca e luminosa num contentamento difícil de explicar. Iemanjá informou-o que a grande tormenta parou de crescer e que o seu sacrifício não terá sido em vão. O navegante só lamenta não ter encontrado o pai e os irmãos.
Mari diz para as filhas as acompanharem e que mais tarde as voltará a chamar:
- Nove meses passam a correr, Cecília. Agora vão, sigam os animais e aguardem que eu vos volte a convocar.
As mantas afastam-se, plácidas, a nadar muito unidas.
O mar a mexer-se com elas.

62 - PARTIDA

 
- E eu sozinha não estava porque a ti te tinha, e tu sozinho não estavas porque me tinhas a mim, e às tuas serras, e às tuas estranhas danças, e à tua rara forma de loucura. Resolveste partir, e regressaste, e agora partiste de vez para tão longe, e eu sozinha estou porque o destino te convocou. Partiste para esse lugar distante onde habitam as memórias e as vozes de todos os que não são.
Adelaide desejou que a morte o tivesse vindo buscar de madrugada, enquanto ele dormia. Desejou que flores brancas e amarelas pudessem enfeitar os mastros de uma nau feita de papel onde jazeria o corpo do irmão marinheiro. O navio desapareceria na linha do horizonte onde a lua cheia o esperaria, a sorrir.