As poderosas estátuas permanecem iluminadas enquanto
observam, sorridentes, a navegação pacífica das quatro embarcações. Continuam a
oferecer-lhes uma surpreendente guarda de honra. As naus velejam por águas mais
tranquilas e as mãos ensinadas do capitão-mor já não precisam da ajuda do
corajoso marinheiro para manter estável a rota do navio. Álvaro afasta-se da
grande torre, muito apressado. Tem pressa, não sabe porquê. Talvez tenha receio
que as portas do mar se voltem a fechar.
- Tenho de descobrir os segredos escondidos nas
profundezas deste lago oceano, entender quem são estas imensas estátuas cor de
coral que mais ninguém avista. Porque me chama o mar?
Álvaro afasta-se de Vasco da Gama sem que ele se aperceba,
pois grande é o seu contentamento. O marinheiro aproveita-se da distração de
todos para entrar pelas portas do mar adentro, sem hesitar. O lago recebe-o, eis
que o amigo regressa a casa. Ali mergulha uma estátua viva cheia de curiosidade.
O navegante tenta perceber a verdadeira dimensão
deste lago imenso que o decidiu poupar. As ondas regressam a dimensões menos
assustadoras e agradecem ao nadador a
rápida resposta, enquanto as naus se vão afastando. Álvaro já não as poderá
alcançar.
- Sou um ser solitário, o mar é este ser solitário
que eu amo por ser tão solitário como eu. O lago chamou-me, recebe-me, aqui
estou! Todos os ruídos desaparecerão assim que eu mergulhar no seu aconchego.
As estátuas de coral acompanhar-me-ão. Pretendo ser como elas, um ser
solitário, escondido de tudo aquilo que existe.
Foi para viver esta experiência que Álvaro embarcou,
quer descobrir os segredos das cidades construídas nas profundezas do lago
misterioso, e se chegou até aqui, é porque a jornada corre como previsto.
- Estou preparado para visitar as profundidades mais
sombrias onde habitam estas companheiras de viagem, estátuas, tal como eu.
Tinha a certeza que seria por estas latitudes que as viria encontrar, e elas
ajudar-me-ão nesta descida.
Foram muitas as vozes que gritaram por Álvaro, mas a
sua decisão estava tomada. Antes que se pudesse arrepender, nadou na direção
contrária à das embarcações, até ao lugar onde as ondas o abraçaram. O
marinheiro mergulhou acompanhado por duas estátuas de coral que o ensinam a
respirar.
No fundo do mar a solidão sente-se com maior
intensidade. Torna-se difícil descrever tanto vazio. A água fria faz ranger os
ossos do corpo e até a luz sente dificuldade em mergulhar. Pequenas gotículas
brilhantes dissipam-na em mil pedaços e transportam-na para outros lugares do
imenso oceano. Poucas são as gotas que conduzem a luminosidade até ao fundo do
lago onde o frio corta tanto como o medo. A Álvaro nada mais resta senão
esperar. As estátuas de coral observam a sua aflição enquanto o ensinam a
respirar debaixo de água. Ele não entende como deve proceder. Dizem-lhe para
ficar quieto, deverá permanecer calmo se quiser sobreviver debaixo das ondas do
mar oceano. O navegante fecha-se dentro do casulo que é o seu corpo, isolado do
exterior. Deixa de resistir, abandona-se, e é então que tudo se torna mais fácil
e ele começa, finalmente, a respirar. Surgem-lhe as lágrimas e uma
clarividência que ele jamais sonhou possuir. Mais lágrimas se juntam às
primeiras e a todas as lágrimas do grande lago. Tem de conseguir manter-se
corajoso ao longo de todo o processo de descida. No início, os pulmões
enchem-se de água e o estômago fica pesado com tanto sal. O início é o pior dos
instantes. A concha que o recebeu fica nervosa, e esse seu nervosismo é
contagioso e perturba.
Álvaro tem o seu primeiro contacto com o mais puro
dos silêncios.
Um curto instante.
A luz e as trevas misturam-se enquanto ele decide se
deve continuar a responder afirmativamente aos apelos do mar.
Estava mais seguro a bordo da São Gabriel quando enfrentava
a fúria das tempestades do mundo. Sentia-se mais protegido enquanto lutava,
esperançoso, contra aquela imensa loucura. Foi durante a batalha que teve a consciência
de que alguma coisa tinha de fazer para tentar sossegar a extrema irritação do
oceano. Prometeu-lhe que se entregaria à sua vontade e que regressaria à
entrada daquela cidade subaquática, reino da rainha negra. Foi isso que ele
fez, uma promessa.
- A minha irmã mais velha sempre me achou louco, um
doido varrido. Chamava-me parvo, e dizia que eu fazia coisas que não lembravam nem
ao diabo. Se ela agora me pudesse ver, que nomes me chamaria?
Álvaro conseguiu dominar a respiração debaixo de água.
A primeira vez que o fez, sentiu um choque tremendo. Apontaram-lhe dois fuzis
aos pulmões, e dispararam. As balas cortaram as águas, penetraram-lhe as carnes
junto às clavículas, que logo se partiram em pedaços, e saíram pelas costas
rasgando-lhe as omoplatas. As dores que sentiu não eram deste mundo.
Grita!
Abre a boca num esgar de dor e as águas do oceano,
que lhe tinham invadido as entranhas, são expelidas.
Grita, de novo.
Grita um grito que ninguém escuta.
As duas estátuas cor de coral observam-no, com
atenção. Dão conta do seu progresso e esboçam um sorriso.
Grita, muito alto, e num tom cada vez mais agudo.
Ninguém o escuta, nada nem ninguém o virá aqui
encontrar.
- Este é o reino dos silêncios, é onde aprendemos a
respirar. Aqui ninguém aponta ou nos informa acerca do que cá podemos
encontrar. Ainda bem que eu embarquei, for por tudo isto que eu resolvi trocar
o certo pelo incerto.