domingo, 28 de dezembro de 2014

21 - OS PÁSSAROS VIERAM PARA NOS VER


Quem recebe a dádiva desta viagem
às profundezas do lago inexplorado,
terá de conseguir manter-se calmo e respeitador
para que a rara oferenda não se transforme em dor
 
- No fundo do mar não se sente a passagem dos dias, não existe um norte, um sul, um este ou um oeste, apenas um faz de conta sempre igual, incapaz de ser descrito por ser demasiado confuso e complexo. O tempo continua a esquecer-se de aqui chegar, o que torna tudo ainda mais emaranhado. Torna-se imperativo acreditarmos naquilo que desejamos para ser possível manter o equilíbrio da razão.
Que poderes se escondem nestas falésias de grutas escuras?
Que segredos guardam, e que estátuas se ocultam nesses lugares onde raramente a luz penetra?
Álvaro nunca passou por aqui, é ele o primeiro dos aventureiros a viajar por tão remotas paragens. Alguém teria de o fazer, e ele acreditou que assim iria acontecer. Antes de embarcar, deixou de ter receios. Foi durante o último de seus longos passeios que tudo se tornou claro e as dúvidas deixaram de o sobressaltar. Acordou, naquele dia igual a tantos outros, e soube que tinha chegado a hora de mudar de vida. Passou a fazer apenas o que muito bem lhe apetecia, e a obedecer apenas aos seus pensamentos, para tentar descobrir o seu verdadeiro eu. Essa foi a mais importante de todas as decisões.
Foi assim que aqui chegou.
Enfrentou, com os companheiros, um mar que castiga.
Lutou contra as forças mais cruéis do oceano, este lago que foi construído para castigar, um mar castigador.
Apenas os mais valorosos se atrevem a enfrentá-lo e a pôr em causa o seu poder.
 
Amanhã será um novo dia.
Foram muitos os marinheiros que recearam que o último dos dias tinha chegado. Era impossível ultrapassar a altura daquela onda, uma verdadeira montanha de água intransponível se alevantou. E depois de terem concretizado o irrealizável, mais e mais montanhas cresceram, umas atrás das outras, para fustigar as naus até à exaustão. A frota esteve bem perto de perder a tenacidade e o equilíbrio, pois foi inúmeras vezes posta à prova. Não fosse a bravura e mestria dos navegantes e de quem os comandava, e eles jamais teriam sido capazes de vencer tantos demónios, tantos medos e incertezas, e mais os monstros em que a água se transformou. Foi então que aquele mostrengo maior surgiu, tapando toda a linha do horizonte, para lhes barrar a passagem do cabo. Era o maior de todos os monstros, e também a ele os navegantes resolveram fazer frente. Álvaro lançou-se ao mar que o convocou, ao mesmo tempo que as bombardas e canhões iam rugindo, os homens gritando, os ventos soprando e os furacões rodopiando. Quem não se preocupava e se divertia com os acontecimentos era a dona morte, pois nela reside uma loucura difícil de descrever. Estava entretida a ver arrefecer a esperança dos homens que quase tinham esquecido a cidade das colinas que os viu partir. Os atos de bravura dos marinheiros sucediam-se em tarefas árduas e hercúleas que executavam para conseguir manter a firmeza dos navios, que ora desapareciam ora voltavam a aparecer.
Agora, em porto seguro, os marinheiros sucedem-se nas tarefas de conserto para lhes restabelecerem a solidez e nobreza dos dias anteriores ao do grande confronto. Lá no alto, bandos de pássaros negros voam aos círculos por cima dos navios, sem que ninguém saiba de onde vieram. Pairam nos céus todo o dia, desaparecem à tardinha, e regressam pela alvorada em bandos cada vez maiores. As aves estranham a presença destes seres desconhecidos e das suas embarcações, e ziguezagueiam para melhor observar tudo o que ali em baixo se vai passando. Ao entardecer, o céu escurece-se com tantos pássaros que se entretêm a formar nuvens bailarinas. Ao terceiro dia do fenómeno, o espanto inicial foi substituído pelo nervosismo dos homens. Quanto às aves, elas deixaram de se mostrar tão admiradas com a presença daqueles seres misteriosos e das suas preciosas e estranhas criaturas roliças de velas pintadas.
- Capitão, os pássaros não mostram vontade em nos abandonar e chegam em bandos cada vez maiores. Ao contrário das gaivotas, começam a irritar os homens que já inventam historietas de maus presságios. Alguns questionam se não seria melhor disparar tiros de intimidação para os afugentar. O que deseja que eu lhes diga, meu comandante? Posso dar-lhes permissão para disparar? Quem sabe se o simples facto de assim se quebrarem as rotinas não terá o condão de os acalmar.
Vasco da Gama não consegue deixar de esboçar um sorriso com as palavras do imediato. Os bravos que resistiram às mais poderosas forças do mar oceano são os mesmos que se mostram incomodados por simples bandos de pássaros irrequietos. O capitão acaba por consentir ao pedido.
- Se acha que isso os vai acalmar, pode mandar preparar as armas. Amanhã, bem cedo pela manhã, mal os pássaros cheguem, disparem os fuzis na sua direção para que os cagaços e a estranheza desapareçam de vez da cabeça dos homens. Vá lá informá-los, já que também me parece ser esta a sua vontade. O brilhozinho nos seus olhos não deixa que me possa contradizer. Comunique aos homens que amanhã lhes será presenteado um alvorecer bem diferente do habitual.


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

20 - SÃO NEGROS OS CAMINHOS QUE SEGUIMOS



No fundo deste grande mar oceano erguem-se chaminés que emanam água a temperaturas muito elevadas. Ninguém suspeita que aqui a vida possa ser possível. Mesmo numa zona tão inóspita, ela encontra maneiras para conseguir germinar e faz por acontecer. Fórmulas primárias resolvem as equações necessárias para criar todas as estruturas que aqui proliferam, das mais básicas às mais complexas. A vida rebenta, surge, e nada parece ser capaz de a impedir de brotar. Acontece, quase sempre de maneira entusiasmada, como uma luz, é uma centelha inicial que se ilumina, e eis que a vida sobrevém.
Álvaro lança-se para o topo do planeta negro com o firme objetivo de alcançar o outro lado da falésia. Pelo meio existe um vazio tremendo que se torna mais fácil de ultrapassar aos comandos da grande esfera. O marinheiro consegue fazer rolar esse mundo com a mesma perícia com que o trouxe até aqui. Respirar debaixo de água tornou-se mais fácil, é uma habilidade tão natural que ele já nem se recorda de não a saber dominar. Do outro lado do abismo terá de descobrir a estrada que lhe dará acesso à cidade principal do reino subaquático, a mesma que visitou quando nestas águas mergulhou pela primeira vez. Esta zona do leito do lago é igualmente escura, e tem igual número de grutas e de armadilhas. A paisagem é idêntica. Foi uma coincidência estranhíssima ter-lhe surgido a ideia de se lançar ao mar naquele exato lugar. Álvaro reproduz os mesmos gestos, faz tudo da mesma maneira para assim tentar descobrir, com igual facilidade, o caminho para essa cidade secreta.
- São cada vez mais escuras estas passagens por onde andamos. Mergulhei para que os meus companheiros fossem salvos e senti-me muito tranquilo depois de o fazer. Ao nascer de cada dia, recordo as imagens dessa terrível batalha em que enfrentámos este mar gigante que agora me abriga. Sinto-me melhor, e já consigo suportar esta quase ausência de luz e de calor.
 
As naus estão em muito mau estado e serão necessárias algumas semanas para que se efetuem as reparações mais importantes. Esse é um tempo que fará falta e causará transtorno para o que resta da jornada.
- Foram negras, muito negras as nuvens que aguentámos, mas no final conseguimos alcançar a costa. O tempo melhorou, já estávamos a precisar disso para retemperar as forças e dar novo alento às embarcações.
Vasco da Gama aceitou, com boa vontade e complacência, a sorte com que Deus os abençoou nesta fase da viagem. Se para aqui foram empurrados, é porque a história desta expedição assim tinha de ser escrita.
E mais um dia se passou, Teu é o reino, o poder e a glória.


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

19 - O MOVIMENTO DOS SILÊNCIOS



Álvaro alcança um local remoto do fundo do oceano e abeira-se dele com grande rapidez. Aos comandos da grande esfera de estátuas, segue agora por um caminho estreito, pouco iluminado, povoado por cavernas de onde peixes bizarros o observam.
- O senhor das profundezas deve morar por aqui e deve estar muito bem escondido. Este foi um dos muitos atalhos que chocos e polvos me indicaram, expelindo tinta escura sempre na mesma direção.
Um marinheiro como Álvaro não devia apreciar caminhar assim à deriva, mas ele continua a avançar, resoluto, da mesma maneira como praticava as caminhadas em que desaparecia por vários dias. Nesses passeios apreciava, entre outras coisas, a companhia do silêncio, das ervas e das árvores, adorava as conversas que mantinha com pedras e nuvens, e deleitava-se com a terra que o recebia quando resolvia parar para dar descanso ao corpo.
O mundo transfigurou-se, tal como a paisagem do fundo do lago que ninguém parecia ser capaz de enfrentar e, contudo, por aqui vagueia este marinheiro pequeno e aventureiro, de coração enorme. A paisagem é dominada por ravinas inexpugnáveis onde apenas peixes aventureiros se atrevem a nadar. Álvaro necessitaria de possuir barbatanas muito poderosas para poder atravessar este vazio e alcançar as montanhas que se estendem do outro lado do abismo. Foi para esse lado que os cefalópodes lhe indicaram o caminho, mas só com a ajuda do planeta de estátuas lhe será possível continuar.
Ele sentia-se bem a percorrer dezenas de léguas a pé por terras do centro do país. As serras eram as suas companheiras confidentes, eram toda a companhia de que precisava. A irmã do marinheiro só estranhou a primeira vez em que ele esteve desaparecido por mais de uma semana. Depois das explicações dadas pelo irmão, Adelaide confirmou a suspeita de que o ele tinha ensandecido de vez, e quando voltou a ser dado como perdido, o seu peito não ficou tão apertado e ela nem pediu ajuda para o tentarem encontrar. O irmão saíra por vários dias, em viagem, para tentar encontrar respostas para as muitas dúvidas que carregava e que tanto o preocupavam. Era isto que ele lhe dizia, com aquela expressão de ausência tão peculiar.
De todos os olhos que se voltaram para ela, os que melhor recorda são os do irmão. Olhos mais brilhantes do que a lua, e bem mais misteriosos. Adelaide daria tudo para poder voltar a vê-lo, ser capaz de escutar e interpretar os seus silêncios. Ficou dias inteiros à sua espera, dias de sol e temporal. Esperou tanto por ele. Preferia ter conseguido resistir, se pudesse, mas os silêncios movimentavam-se tão iguais aos seus. Álvaro dizia que cada passo que gravava no terreno mole e lamacento marcava o lugar onde uma estátua de pedra acabaria por nascer. Se assim fosse, centenas de milhares de estátuas germinariam de cada uma das suas pegadas, um exército de estátuas perpetuaria os seus passeios em todos os trilhos por ele percorridos. Uma multidão marcaria, dessa forma estranha, as histórias de todas as suas viagens.
- Olhei para trás, Adelaide, e juro-te, foi grande a minha surpresa. Vi milhares de estátuas nascerem em cada um dos lugares que pisei, em cada pegada que tinha acabado de delinear. Ali estavam perfiladas milhares de estátuas, umas atrás das outras, a indicarem-me o caminho percorrido. A tua expressão diz-me exatamente o que estás a pensar. Nem vale a pena iniciares o teu discurso pois o teu rosto espelha tudo o que te vai na alma.
Adelaide sorriu, aturdida, mas sorriu, antes de responder ao irmão:
- Sim? Agora senta-te! A sopa já está pronta. É aquele caldo de galinha de que tanto gostas.
Álvaro obedeceu e agradeceu o cuidado da irmã. Sentou-se, levou a malga à boca, e de um só trago bebeu o néctar quente e amanteigado que ele tanto apreciava