O marinheiro deixou de escutar.
Quem será esta jovem a quem ele estende a mão?
Alcança-a. Segura-a. Puxa-a daquele lugar onde se
afundara.
Estaria ela preparada para o deixar?
A jovem quase se deixou adormecer e agora luta,
ajuda-o a fazer de conta que tudo não passa de um longo pesadelo que os dois
vão experimentado. Acredita, tal como ele, que a viagem não acontece num sonho
e está muito longe de terminar.
A esfera ilumina-se e acaba por se imobilizar.
A rapariga que não é estátua queda-se, silenciosa,
junto ao marinheiro salvador.
- Vês, marinheiro, preferi ficar do teu lado.
Ergueste-me. Estas estátuas ainda não sabem quem foram, mas gostam de te
observar. Eu também gosto de te observar neste grande quarto circular idêntico
ao interior de um castelo muito antigo. Pela única abertura que aqui existe
podemos observar aqueles montes distantes separados por uma imensidão de mar.
Está escuro lá fora. Escutei a tua voz a tremer quando me chamaste. Repara como
está escuro lá fora mas o horizonte perto dos montes não é tão sombrio. Vê como
o monte da direita ficou mais iluminado do que o outro.
É noite e quase se pode escutar o tempo.
A rapariga tem razão. A ténue luz da lua entretém-se
a clarear o monte mais à direita com uma delicada luz cor de pérola. Álvaro
compreende que um novo dia nascerá nesta paisagem conhecida. É bela, quase tão
bela como as vistas deslumbrantes que descobriu ao calcorrear as serras beirãs
nos seus longos passeios. Ele sabe, pois já vagueou por aqui, e fica sem
palavras. Não deseja esquecer-se de nada do que lhe está a acontecer. Estas
paisagens não aparecem em sonhos de marinheiros que não sabem ou não se atrevem
a mergulhar.
O fundo do lago não é tão acidentado.
As duas montanhas assemelham-se a duas ilhas
perdidas no meio do mar, uma bem mais iluminada do que a outra.
Álvaro recorda, sabe que foi ali que viu, pela
primeira vez, o fundo deste lago. Da pequena janela do veículo consegue ver
todo o oceano e aquelas duas grandes ilhas a cunhar o horizonte.
- O que foi, marinheiro, porque não falas?
Resolveste ficar misterioso de um momento para o outro? O que vês lá fora é-te
familiar, caso contrário não terias ficado assim tão alterado.
Álvaro vibra de satisfação.
- Não sei. Ainda não tenho a certeza absoluta pois
estamos muito afastados. Quando nos aproximarmos logo te direi. Sei apenas que
fui feliz a caminhar pelas serras onde vivia antes de decidir amar o mar. Este
azul infinito que nunca se cansa de nos deslumbrar. O mar e as serras sempre me
contaram muitas histórias… eu não sei contar contos nenhuns, mas não faz mal.
Agora sei que é ali que pode estar escondida a cidade que descobri quando
mergulhei nas águas deste lago. O passado não pode ter sido um sonho se neste
presente vejo aquilo que vejo e sei que foi ali que estive nessa primeira vez.
É nestes momentos que recordo a minha irmã Adelaide, é um costume que habita a
minha vida. Ela deve estar a pensar em mim e a chamar-me louco, como é seu hábito.
A jovem recuperou o calor por completo e já não tem
metade do seu corpo feito de pedra.
- As tuas palavras fizeram-me recordar quem fui.
Talvez seja por serem tão verdadeiras. Lembro-me de nascer e viver perto do
mar. Sempre que vejo uma onda fico feliz, tão feliz como estou agora por ter
conseguido, de novo, caminhar. Olha, é impossível não teres dado conta da minha
felicidade, marinheiro. Eu consigo andar! Era algo que não fazia desde há muito
tempo! Já nem sabia como era bela esta sensação de caminhar. Estive anos
perdida, abandonada entre rochedos numa orla fria e salgada do oceano, num
lugar sem florestas, sem árvores, onde só com muita imaginação conseguia criar
objetos capazes de projetarem sombras no leito do lago. Era isso que eu tentava
fazer todos os dias para me entreter e parar de chorar. Vivia desalentada, uma
estátua depositada nos rochedos, longe de tudo. Pensava em árvores,
imaginava-as altas, bem altas e vigorosas, árvores que podiam viver séculos a
fio e eram capazes de projetar sombras imensas e poderosas e me ajudavam a
sentir menos só.
Álvaro arrepende-se de não ter dado conta da
felicidade da rapariga. Custa saber quando alguém não repara em nós.
- Desculpa! Tens razão, nem sei o que dizer. Peço
perdão por não ter reparado na tua felicidade. Eu estou feliz por ti. É difícil
imaginar tudo aquilo por que passaste, imaginar todos esses anos em que
estiveste imobilizada no mesmo lugar. Só tu podes saber qual a verdadeira
dimensão dessa alegria imensa que é conseguires de novo caminhar. Se eu
soubesse cantar, dedicar-te-ia uma canção.
A jovem faz-lhe o sinal do silêncio, cola o
indicador da mão direita aos lábios do viajante e agradece-lhe com um beijo
longo e salgado, porque a vida assim o quis.
- Schiuu… em breve será dia e tu viajarás até ao
monte iluminado onde a tua cidade te aguarda. A vida assim o quer. Só preciso
de um nome, ó nobre marinheiro sonhador.
Nem sempre é tarde para cantar. Álvaro não sabe
cantar outras cantigas para além das velhas e gastas canções de marinheiros.
Ao primeiro longo beijo salgado outros se seguem,
mais quentes e ousados. Aquela que foi feita de pedra, que viveu esquecida a
imaginar coisas e as sombras que as coisas faziam, canta agora melhor do que
ninguém. É melhor cantar, para quê falar se cantar é melhor que falar, e o seu
corpo doce e nobre deixa de ter receio e canta e aquece e consola. Os dois
celebram os seus corpos cansados, chegaram aqui vindos do passado, agora é presente.
Nunca é tarde para cantar.
- Schiuu… em breve chegará o novo dia… guardemos silêncio…
a vida diz que nem sempre é tarde para cantar.