sábado, 28 de fevereiro de 2015

52 - A CONDIÇÃO SILENCIOSA



O fundo do lago ganha a mesma cor das algas dos cascos dos navios. O que antes eram cores vivas e garridas, são agora meros contrastes pálidos e acastanhados. As luzes estão apagadas e a escuridão avança. Em pouco tempo, Tetis sentenciou, com um simples gesto, o destino de Álvaro.
Cecília consegue entreabrir o grande portão e corre até ao marinheiro, fitando-o, desesperada. Prostra-se ao seu lado, empurra-o e puxa-o, consumida pela dor e por este fim que lhe estava destinado. A rainha negra  encontra-se junto a ele, imponente, ajeitando a longa capa que a cobre.
- Senhora. – exclama a jovem, com voz trémula. – A senhora vai desejar mais alguma coisa?
Fortes correntes marinhas saem debaixo da capa de Mari, que continua sem dar respostas. Tiamat levanta a mão e estala os dedos para chamar de volta as mantas voadoras. Passa as mãos pelo delicado rosto de Cecília, e sorri. Seria mais fácil ignorá-la, deixá-la aqui abandonada nesta dor de quem perdeu alguém que, de verdade, nunca lhe pertenceu. O que estará a rainha a pensar? Tanto silêncio da sua parte é um estranho sinal.
Álvaro é a nova estátua de Sedna, e Cecília não consegue controlar as lágrimas.
- Não quero, eu não quero! – diz, sem refletir. – Não quero! Eu não queria que isto lhe viesse a acontecer.
Mari passa, de novo, as mãos pelos cabelos de Cecília, e adivinha-lhe os sentimentos. A rainha cospe espuma de mais de mil ondas, com a firme intenção de as fazer chegar até ao lugar onde ainda navegam as embarcações atormentadas dos que se atrevem a passar por cima do seu reino. Tetis encarou os navegantes como inimigos, e reagiu, com firmeza, a tamanha ousadia. Quem julgam eles que são?
Álvaro perdeu a capacidade de falar, contudo, esta transformação ainda lhe permite sentir as coisas. Escuta estranhos gemidos que lhe chegam, em forma de eco, do fundo do grande lago. A condição humana protege-o, mesmo agora que foi transformado em estátua através de uma eficaz artimanha da poderosa rainha, porém, tudo ficou bem mais difícil de entender.


51 - ORAÇÃO



Uma brisa gelada levantou-se por cima de Adelaide, e beijou-lhe a face que logo empalideceu. Aquela não era uma brisa qualquer que caía, pois mais parecia que nela tinham chegado almas de outro mundo. Adelaide fechou os olhos, apertou as mãos bem apertadas, e rezou.
- Ai meu rico irmão, que deves estar a sofrer tanto nesse oceano distante. Senhor, Deus Pai, eu Te rogo. Mantém afastados os demónios, rezo pela salvação de meu pai e meus irmãos. Estarei eu rodeada por desconhecidos invisíveis que me vão apertando o pescoço com estes dedos magros? Estarei eu a senti-los? Mexem-me nos cabelos! Segredam-me falsidades, Santíssimo, e eu rogo-Te, e imploro, salva os meus homens, defende-os e perdoa-lhes os pecados! Afiança-lhes segurança,  pois grande é a minha tristeza, tão grande e dolorosa que já só vivo para rezar pela sua salvação.
Rezou durante toda a noite, rezou até a alvorada do novo dia a ter encontrado prostrada no chão do quarto, onde um mar de lágrimas pintava riachos que escorregavam, afastados, pelas frinchas abertas no soalho. Adelaide chorou desesperada, naquela manhã, o resto das lágrimas que lhe pertenciam. As orações acalentaram-lhe a fé, e foi assim que ela não deixou de acreditar.
Precisava muito de descansar.
Enquanto rezava, de coração muito apertado, enfrentava as brisas gélidas que se ergueram para a atormentar e enlouquecer, e exclamava:
- Aaahhh! Meu pai e meus irmãos não podem ter morrido! Sumiram-se, imprudentes, por amarem o oceano mais do que tudo na vida. AAAAAaaaahhh…, quem me dera ter nascido homem como eles para ter ido atrás da mesma sorte que os levou. Nasci num tempo que não queria, e agora sinto o peso da solidão nesta casa que passou a ser visitada por brisas e demónios. Que culpa tenho eu, Senhor? Vejo o que não desejava, mas obedeço-Te, mesmo tendo sido construída neste corpo onde a vontade definha. São cada vez mais as vozes que me dizem o contrário daquilo em que acredito, e travam batalhas ferozes e sangrentas que me forçaram a descer até ao chão duro e áspero onde me interrogo. Serei uma escultura impossível de modificar?
Adelaide permaneceu o resto da manhã deitada, com as mãos abertas viradas para cima, de olhar vazio, a morder os lábios com grande intensidade, até que estes começaram a sagrar.

50 - A LONGA CAPA DE TETIS


O mar agita-se à sua passagem, e as correntes ganham mais força.
Álvaro seguiu o seu instinto, lançou-se às águas do lago em busca de auxílio, numa tentativa desesperada para salvar a vida dos seus companheiros de jornada. Agora que aqui chegou, está contente por rever esta sublime mulher estátua da cor do ébano, tão bela quanto mentirosa. A Nereide é graciosa, mas é tão esbelta quanto falsa, é dona de uma formosura falsificada através da manipulação das almas dos viajantes. O marinheiro não consegue entender porque a vê assim, tão autêntica, perfeita e sedutora.
- Regressaste aos meus domínios, nobre viajante! Deves sentir-te bastante orgulhoso pois o que conseguiste alcançar é, deveras, um feito extraordinário.
A beleza da mulher encanta-o. É dona de um rosto imaculado de tez escura, e de um corpo bem definido com pele aveludada, preparado para o prazer. Ela avança até ficar bem próxima do viajante, vestida unicamente com um longo manto acetinado coberto de pérolas e águas-marinhas, debruado com aplicações de coral. Vê como ele a observa, com uma vontade incontrolável de a ela se render, como um grande felino amestrado, e ela a ele, com o sangue a fervilhar nas veias. Espíritos vigilantes que se compreendem, que pretendem o mesmo, e ela toca-lhe no peito com os dedos finos de pele suave, e as vibrações nascidas desta proximidade aumentam de intensidade, e o marinheiro começa a escutar imensos ruídos , sons agudos, muito altos e revoltos que lhe causam uma terrível comoção. Com a cabeça confusa e recheada de estampidos, Álvaro ajoelha-se numa tentativa de aplacar a dor. Encosta a cabeça aos pés da rainha e segura-se às suas pernas negras e macias, magras e perfumadas. O barulho torna-se insuportável. Ela levanta-o e abraça-o. Abriga-o debaixo do seu manto e beija-o longamente com um hálito idêntico ao odor das muitas tempestades que se abateram por sobre os navios. O perfume está por todo o lado e o marinheiro não consegue respirar. O odor espalha-se, entranha-se em todos os lugares, e a rainha engrandece-se, abre os longos braços e estica os dedos das mãos como garras afiadas preparadas para o destroçar.
Qualquer tentativa de fuga será inútil pois as vozes que lhe gritam, aguerridas e selvagens, mantêm-no imobilizado pela dor.
- Marinheiro, meu querido e belo marinheiro! – diz ela, mostrando a longa língua rosada. – Foi aqui que tudo começou. O meu corpo ainda guarda as memórias das primeiras lágrimas e fluídos que fizeram nascer este lago oceano. Foram muitas, e eram tão impetuosas como os ensejos mais íntimos do coração dos homens, mas agora estão mais calmos e tranquilos. Tu não serás exceção. Aqui ficarão guardadas as marés dos teus sonhos, e eu serei a sua guardiã. Passaste a pertencer-me, doravante serei a regente do teu destino e do destino dos teus homens. O meu nome é Mari, ou Tiamet, ou Tetis, ou Fand, ou Ma-Tsu, chamo-me Sedna, ou Iemanjá, Iara ou Janaina, meu nome é todos estes, e nenhum. Foram as tuas lágrimas a trazer-te até mim. A tua alma terrestre levou algum tempo a reconhecer as novas ordens, mas foste rápido a aceitar e a sentir essa necessidade, quase obrigação, de te lançares ao mar.
O marinheiro ainda encontra forças para a enfrentar, e atreve-se a responder:
- Queria e não queria. Todas as noites em que o mar nos invadia, de todas as vezes que tomava conta dos lugares e se enfiava pela boca dos canhões, diminuía-nos a determinação. Nesses dias e noites eu jurei aos meus parceiros que nada de mal nos havia de acontecer. Ali mesmo resolvi enfrentar o gigante, naquele lugar onde mergulhei nas suas águas profundas. Cada gota que bebi passou a conhecer-me e a compor-me. Agora que aqui cheguei, rogo-te, rainha destes mares, por tudo o que existe de sagrado, e antes que me falte a voz e a coragem, salva os meus companheiros de viagem. Só tu possuis o poder para concretizar esta vontade, e desde já, perdoa esta minha ousadia
Álvaro está tão atacado pela dor, que fica cego e quase lhe rebentam os tímpanos. De costas curvadas e olhos semicerrados, aguarda pela transformação. Já se sente estátua, começa a sentir-se de pedra no momento em que recorda Cecília e Adelaide. Sente-se enlouquecer e entra em pânico. A rainha Tetis usa o grande manto para o cobrir e acalmar. Está ensopado, pesa toneladas, o peso é tremendo e leva-o à inconsciência.
Mari tem as mãos frias da nova estátua agarradas às pernas negras. A humidade eterna espalha-se por ação das correntes.
Tiamet fecha os olhos, chama-se a si própria todos os nomes falsos do mundo. Está incomodada pelo aspeto do marinheiro sonhador. Não será fácil despedir-se da nova estátua que foi acrescentada à coleção.
Cecília chora convulsivamente. Assistiu a tudo por uma frincha do portão. As luzes vermelhas iluminam os olhos da rainha e as mantas nadam na sua direção.
- O teu pai e os teus irmãos também me descobriram, e olharam-me, embevecidos, tal como tu. O teu pai tinha cabelos brancos e um dos teus irmãos atreveu-se a tentar escapar. - Tu amas-me? – pergunta-lhe Tetis, com emoção. – Tenho dentro de mim esta pessoa que sou e que não quero. Eu não queria transformar-te em estátua. Foi sem querer que tive de o fazer, marinheiro, foi sem querer…
Cecília suspira. As lágrimas caem-lhe pelo rosto. Receia não mais voltar a ver este valente marinheiro que foi forçada a aqui trazer. Tetis é a poderosa senhora deste reino e rege-se por leis antigas muito rígidas às quais ninguém se atreve contrariar.
Mari apaga as luzes dos olhos e todas as luzes da cidade. As mantas vão nadando, em círculos, perto de si, ligadas a ela, até que se afastam, até que desaparecem de vez.
- Álvaro, meu querido marinheiro, desculpa! Tentei, desta vez tentei, mas tinha de o fazer… Porque vieste até aqui tentar salvar os teus? - pergunta Cecília, de coração nas mãos. A jovem fecha os olhos e deita-se ao lado da estátua do viajante. Aguarda que o grande manto da rainha Tetis também a venha cobrir e transformar.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

49 - SURPRESA


As mantas graciosas fluem em círculos perfeitos por cima do marinheiro.
Os soldados param junto ao grande muro que existe no fundo do beco e um deles empurra uma porta sublime, muito robusta, que se prolonga até ao cimo da parede, dando passagem para um espaço verdejante. Deste lado do imenso paredão, um relvado grandioso domina por completo a paisagem. O tapete é formado por algas e sargaços enlaçados que abrangem tudo o que a vista alcança. Por debaixo da estranha tapeçaria começam a brotar incontáveis estátuas de pedra que acabam por formar uma extensíssima exposição. As figuras estão assentes em pedestais do mesmo material, e vão-se contorcendo ao surgir deste chão.
- Santíssimo Sacramento! – exclama Álvaro, com o espanto desenhado no rosto. – Serão estas pessoas as donas das vozes que eu escutava? – reforça ele, emocionado como há muito não se sentia.
E se fossem estes homens e mulheres os donos das vozes que ele escutava? Ele, que aprendeu a respirar e a viajar neste oceano mágico e incompreendido, não consegue manter a boca fechada com o espanto. Aqui se espraia um mar de verde povoado de estátuas saudosas.
O viajante seria incapaz de viver neste sítio toda a vida.
Os peixes descem e nadam à volta das estátuas, como pássaros.
Álvaro vê os peixes e é assaltado por um pensamento singular:
- E se os meus irmãos e o meu pai estiverem aqui no meio destas estátuas? - Serão estas estátuas de finados ou estátuas viventes
Olha-as, de olhos húmidos, receosos. Peixes chilreantes aproximam-se e debicam-lhe os cabelos em busca de alimento.
Cecília está do lado de lá da grande parede a espreitar por uma pequena frincha. Ela consegue ver os peixes-pássaro, e empurra a porta para a tentar abrir, mas sem sucesso. Peixes minúsculos vão ter com ela e bebem-lhe lágrimas do rosto.
Os soldados forçam o marinheiro a avançar, pedem-lhe que continue a marcha enquanto um pequeno cardume se aglomera junto aos seus cabelos, formando uma pequena nuvem prateada. A rainha negra surge do nada com a mesma naturalidade e surpresa daquela primeira vez.