O mar agita-se à sua passagem, e as correntes ganham
mais força.
Álvaro seguiu o seu instinto, lançou-se às águas do
lago em busca de auxílio, numa tentativa desesperada para salvar a vida dos
seus companheiros de jornada. Agora que aqui chegou, está contente por rever
esta sublime mulher estátua da cor do ébano, tão bela quanto mentirosa. A
Nereide é graciosa, mas é tão esbelta quanto falsa, é dona de uma formosura
falsificada através da manipulação das almas dos viajantes. O marinheiro não
consegue entender porque a vê assim, tão autêntica, perfeita e sedutora.
- Regressaste aos meus domínios, nobre viajante!
Deves sentir-te bastante orgulhoso pois o que conseguiste alcançar é, deveras,
um feito extraordinário.
A beleza da mulher encanta-o. É dona de um rosto
imaculado de tez escura, e de um corpo bem definido com pele aveludada,
preparado para o prazer. Ela avança até ficar bem próxima do viajante, vestida
unicamente com um longo manto acetinado coberto de pérolas e águas-marinhas,
debruado com aplicações de coral. Vê como ele a observa, com uma vontade
incontrolável de a ela se render, como um grande felino amestrado, e ela a ele,
com o sangue a fervilhar nas veias. Espíritos vigilantes que se compreendem,
que pretendem o mesmo, e ela toca-lhe no peito com os dedos finos de pele
suave, e as vibrações nascidas desta proximidade aumentam de intensidade, e o
marinheiro começa a escutar imensos ruídos , sons agudos, muito altos e revoltos
que lhe causam uma terrível comoção. Com a cabeça confusa e recheada de
estampidos, Álvaro ajoelha-se numa tentativa de aplacar a dor. Encosta a cabeça
aos pés da rainha e segura-se às suas pernas negras e macias, magras e
perfumadas. O barulho torna-se insuportável. Ela levanta-o e abraça-o. Abriga-o
debaixo do seu manto e beija-o longamente com um hálito idêntico ao odor das
muitas tempestades que se abateram por sobre os navios. O perfume está por todo
o lado e o marinheiro não consegue respirar. O odor espalha-se, entranha-se em
todos os lugares, e a rainha engrandece-se, abre os longos braços e estica os
dedos das mãos como garras afiadas preparadas para o destroçar.
Qualquer tentativa de fuga será inútil pois as vozes
que lhe gritam, aguerridas e selvagens, mantêm-no imobilizado pela dor.
- Marinheiro, meu querido e belo marinheiro! – diz
ela, mostrando a longa língua rosada. – Foi aqui que tudo começou. O meu corpo ainda
guarda as memórias das primeiras lágrimas e fluídos que fizeram nascer este
lago oceano. Foram muitas, e eram tão impetuosas como os ensejos mais íntimos
do coração dos homens, mas agora estão mais calmos e tranquilos. Tu não serás
exceção. Aqui ficarão guardadas as marés dos teus sonhos, e eu serei a sua
guardiã. Passaste a pertencer-me, doravante
serei a regente do teu destino e do destino dos teus homens. O meu nome
é Mari, ou Tiamet, ou Tetis, ou Fand, ou Ma-Tsu, chamo-me Sedna, ou Iemanjá,
Iara ou Janaina, meu nome é todos estes, e nenhum. Foram as tuas lágrimas a
trazer-te até mim. A tua alma terrestre levou algum tempo a reconhecer as novas
ordens, mas foste rápido a aceitar e a sentir essa necessidade, quase
obrigação, de te lançares ao mar.
O marinheiro ainda encontra forças para a enfrentar,
e atreve-se a responder:
- Queria e não queria. Todas as noites em que o mar
nos invadia, de todas as vezes que tomava conta dos lugares e se enfiava pela
boca dos canhões, diminuía-nos a determinação. Nesses dias e noites eu jurei
aos meus parceiros que nada de mal nos havia de acontecer. Ali mesmo resolvi
enfrentar o gigante, naquele lugar onde mergulhei nas suas águas profundas.
Cada gota que bebi passou a conhecer-me e a compor-me. Agora que aqui cheguei,
rogo-te, rainha destes mares, por tudo o que existe de sagrado, e antes que me
falte a voz e a coragem, salva os meus companheiros de viagem. Só tu possuis o
poder para concretizar esta vontade, e desde já, perdoa esta minha ousadia
Álvaro está tão atacado pela dor, que fica cego e
quase lhe rebentam os tímpanos. De costas curvadas e olhos semicerrados,
aguarda pela transformação. Já se sente estátua, começa a sentir-se de pedra no
momento em que recorda Cecília e Adelaide. Sente-se enlouquecer e entra em
pânico. A rainha Tetis usa o grande manto para o cobrir e acalmar. Está
ensopado, pesa toneladas, o peso é tremendo e leva-o à inconsciência.
Mari tem as mãos frias da nova estátua agarradas às
pernas negras. A humidade eterna espalha-se por ação das correntes.
Tiamet fecha os olhos, chama-se a si própria todos
os nomes falsos do mundo. Está incomodada pelo aspeto do marinheiro sonhador.
Não será fácil despedir-se da nova estátua que foi acrescentada à coleção.
Cecília chora convulsivamente. Assistiu a tudo por
uma frincha do portão. As luzes vermelhas iluminam os olhos da rainha e as
mantas nadam na sua direção.
- O teu pai e os teus irmãos também me descobriram,
e olharam-me, embevecidos, tal como tu. O teu pai tinha cabelos brancos e um
dos teus irmãos atreveu-se a tentar escapar. - Tu amas-me? – pergunta-lhe Tetis,
com emoção. – Tenho dentro de mim esta pessoa que sou e que não quero. Eu não queria
transformar-te em estátua. Foi sem querer que tive de o fazer, marinheiro, foi sem
querer…
Cecília suspira. As lágrimas caem-lhe pelo rosto.
Receia não mais voltar a ver este valente marinheiro que foi forçada a aqui
trazer. Tetis é a poderosa senhora deste reino e rege-se por leis antigas muito
rígidas às quais ninguém se atreve contrariar.
Mari apaga as luzes dos olhos e todas as luzes da cidade.
As mantas vão nadando, em círculos, perto de si, ligadas a ela, até que se afastam,
até que desaparecem de vez.
- Álvaro, meu querido marinheiro, desculpa! Tentei, desta
vez tentei, mas tinha de o fazer… Porque vieste até aqui tentar salvar os teus?
- pergunta Cecília, de coração nas mãos. A jovem fecha os olhos e deita-se ao lado
da estátua do viajante. Aguarda que o grande manto da rainha Tetis também a venha
cobrir e transformar.