Álvaro Abreu de Vasconcelos morreu na mesma cama
onde nasceu. A morte chegou de madrugada e levou-o enquanto dormia. Foi
enterrado sem choros nem exéquias. A irmã encontrou-o dois dias depois da alma
se ter despedido do corpo onde habitara. Adelaide sentiu um pequeno aperto no
peito, e suspirou. Os sete irmãos tinham nascido todos naquela cama, mas ela e
o irmão chegaram ao mundo separados apenas por uma dúzia de meses.
Álvaro não resistiu à doença que matou tantos
naquele inverno. A irmã tem medo de também poder acabar assim, sozinha e sem
ninguém. Eram dela as rosas brancas e rosadas depositadas no caixão, tão negro
como o pensamento da senhora, tão escuro e húmido e trágico. Aquela casa
permaneceu praticamente inalterada com o passar dos anos. Os mesmos puxadores
ferrugentos a ranger como o soalho, como os ossos e o medo, que também tem
ossos e dentes e range tal como os corpos, e sente tal como gente.
O quarto da pequena casa era escuro, e se Adelaide
soubesse escrever, colocaria na pequena folha de papel tudo aquilo que lhe
passava pela alma, e como o medo se transformou num corpo invisível que
resolveu tomar conta do seu mundo. A morte e o medo, e o medo da morte,
construíram aquela coisa feita de ossos e dentes que Adelaide viu e sentiu, e
teve vergonha de não ter sido capaz de tocar no corpo de irmão. Ele era tão
parecido com o velho pai, ali deitado na cama tão da mesma maneira, tão igual.
A casa voltou a ranger, era assim que ela preferia
fazer-se escutar. Todos os poros da velha habitação rangeram exaltados pois a
doença morava ali. Adelaide sentiu-a cada vez mais perto, e resolveu fugir.
Nesse instante a casa rangeu como nunca e a quase ruína acabou mesmo por
desabar, com grande estrondo, transformando-se numa imensa nuvem de poeira. A
idosa ficou estarrecida. A casa estava tão doente como o Álvaro, padecia do
mesmo mal, e feneceu.
O silêncio tomou finalmente conta daquele território
condenado, mas o medo continuava a ter ossos e dentes, era um corpo oculto que
se expandia para reclamar a posse de todos os pedaços da propriedade
aniquilada. A casa morreu sem ter medo da morte, e viveu sem receios enquanto
se manteve de pé. Foi de uma virtude sem igual. Estava necessitada de
trabalhos, mas a doença tomou conta dela antes que alguém se tivesse preocupado
em recuperar-lhe a nobreza de outrora.
Álvaro chegou muito tarde, chegou cansado, exausto,
com a maleita a tomar conta do corpo que ia cantando. Não verteu uma única
palavra, ficou seduzido pelo descanso que em breve chegaria. Álvaro deitou-se, empolgado
pela possibilidade de que aquela talvez fosse a última vez que sentiria a cama
áspera e tão dura.
A fúria dos mares não o tinha conseguido derrotar,
apesar de ter deixado em muito mau estado as naus onde todos navegaram. O
mostrengo cedeu mas deixou marcas muito profundas nas caravelas corajosas que o
resolveram enfrentar, e foram muitos os que acabaram por falecer. Depois chegou
o escorbuto que derrotou ainda mais companheiros no lado oriental da costa
africana, já com o Índico por companhia.
As primeiras cordialidades bem cedo deram lugar ao
crescimento da suspeita. As desconfianças entre os povos, uns mouros, outros
cristãos, resultaram em fortes desavenças, em intrigas, em reféns, em raivas incontidas.
Assim davam a conhecer uns aos outros de que eram feitas as suas entranhas.
Eram muitos os perigos, e cresciam sempre que os navios se aproximavam de terra.
Todos foram transformados pela grandiosa epopeia, e nem a glória desse feito
conseguiu amenizar a ferocidade com que os fantasmas os passaram a visitar.
Dos pesadelos de Álvaro, havia um que se repetia com
bastante regularidade. Ele surgia amarrado a um poste, no centro de uma grande
praça, para que todos ao longe o pudessem ver, e para que todos ao perto lhe
conseguissem cheirar o medo. Ali estava o herege, o bruxo, o aliado de satanás,
como faziam questão de gritar os aldeões com os olhos a chispar.
- Ateiem-lhe as chamas! Arranquem-lhe os olhos pois
o verme jamais aceitará a redenção! – bradava a população extasiada.
De cabelo curto e mal cortado, com a cabeça ferida a
golpes de navalha, Álvaro sorria inocentemente enquanto exclamava, a olhar o céu
como Jesus, que os perdoassem, pois o povo não sabia o que fazia. Implacável, a
morte chegava para confirmar aquilo que Álvaro já sabia. Nesse instante, a voz
de uma donzela, que também tinha sido morta pelas chamas por ter sido considerada
bruxa e feiticeira, chamava por ele do outro lado da grande praça. Dava-lhe
força e a coragem necessária para aguentar a terrível provação.
O povo não se cansava de gritar o seu nome, o povo
nunca se cansava, e insistia que estava para breve o seu regresso ao centro da terreiro
para voltar a ser atado ao poste para ser queimado em frente de todos, num
perpétuo pesadelo.
Álvaro começou a estimar a companhia da morte. Todos
os dias, nos seus pesadelos, ela chegava para o levar. Depois de ser queimado, era
abandonado num longo corredor onde também repousava o corpo da feiticeira donzela.
As vísceras de dezenas de corpos estavam por ali espalhadas numa amálgama de
intestinos, fígados, estômagos, corações e pulmões. Os cérebros tinham sido
retirados aos cadáveres antes de os atirarem para aquele lugar. Uma noite, o
pesadelo repetiu-se várias vezes e os olhos de Álvaro começaram a ficar
vermelhos. Não descansava há mais de três dias, trazia as pernas, as mãos, e os
dedos inchados. Queria dormir, mas aquele era o único descanso que lhe era
permitido.
Aprendeu a sentir a presença da dama de negro.
O velho marinheiro deitou-se, por instantes, na cama
que o viu nasceu, a ele e à irmã Adelaide. Deitou-se e adormeceu profundamente.
Dona morte não conseguiu esconder um sorriso, desejou ceifar-lhe a vida, mas
conteve-se. Aquela ainda não era a sua hora. Tocou-lhe no ombro com delicadeza.
Ele teve uma apneia tão grande que quase o vitimou. Levantou-se, ofegante e
assustado. Ficou mais atento do que nunca. Esqueceu o cansaço. Doía-lhe o
corpo, a cabeça, e doía-lhe terrivelmente a garganta que ficou seca e
ressequida. Tossiu com muita aflição. Já passava das três e meia da manhã
quando conseguiu descansar.
Álvaro falava enquanto dormia. Dizia coisas muito
desinteressantes. Falava, falava muito, falava demais. A voz saía-lhe nasalada
e aguda, irritante. Palavras de marinheiro, conversas fúteis quase sem sentido.
Ele nem se apercebia. Agarrava-se a intervalos constantes àquelas frases que
extraia dos sonhos e pesadelos, de todos os sonhos e de todos os pesadelos, por
mais banais que elas fossem. A sua vida dependia disso. Dona morte gostava de
ouvir aqueles diálogos insignificantes e ficava por ali, sentada numa cadeira,
de braços cruzados, a escutá-lo. Queria saber tudo acerca de todas as coisas, e
sorria. Quando ele se calava, passava-lhe as mãos nos cabelos para que tudo se
repetisse de novo. Álvaro acordava, tossia um concerto de roncos aflitos, e
desertava mais uma vez da cama que o viu nascer.
Os sorrisos da morte transformaram-se em gargalhadas
graves e fortes.
Naquela noite o marinheiro entendeu por bem não
regressar mais ao seu quarto. Os pesadelos repetiam-se com tanta frequência que
ele já não sabia o que fazer, e uma aspereza amarga invadiu-lhe a garganta e a
boca. Jurou ter escutado uma risada. Só podia ser fruto da sua imaginação.
Estava quase à beira da loucura.