terça-feira, 16 de setembro de 2014

01 - A MORTE E O MEDO


Álvaro Abreu de Vasconcelos morreu na mesma cama onde nasceu. A morte chegou de madrugada e levou-o enquanto dormia. Foi enterrado sem choros nem exéquias. A irmã encontrou-o dois dias depois da alma se ter despedido do corpo onde habitara. Adelaide sentiu um pequeno aperto no peito, e suspirou. Os sete irmãos tinham nascido todos naquela cama, mas ela e o irmão chegaram ao mundo separados apenas por uma dúzia de meses.
Álvaro não resistiu à doença que matou tantos naquele inverno. A irmã tem medo de também poder acabar assim, sozinha e sem ninguém. Eram dela as rosas brancas e rosadas depositadas no caixão, tão negro como o pensamento da senhora, tão escuro e húmido e trágico. Aquela casa permaneceu praticamente inalterada com o passar dos anos. Os mesmos puxadores ferrugentos a ranger como o soalho, como os ossos e o medo, que também tem ossos e dentes e range tal como os corpos, e sente tal como gente.
O quarto da pequena casa era escuro, e se Adelaide soubesse escrever, colocaria na pequena folha de papel tudo aquilo que lhe passava pela alma, e como o medo se transformou num corpo invisível que resolveu tomar conta do seu mundo. A morte e o medo, e o medo da morte, construíram aquela coisa feita de ossos e dentes que Adelaide viu e sentiu, e teve vergonha de não ter sido capaz de tocar no corpo de irmão. Ele era tão parecido com o velho pai, ali deitado na cama tão da mesma maneira, tão igual.
A casa voltou a ranger, era assim que ela preferia fazer-se escutar. Todos os poros da velha habitação rangeram exaltados pois a doença morava ali. Adelaide sentiu-a cada vez mais perto, e resolveu fugir. Nesse instante a casa rangeu como nunca e a quase ruína acabou mesmo por desabar, com grande estrondo, transformando-se numa imensa nuvem de poeira. A idosa ficou estarrecida. A casa estava tão doente como o Álvaro, padecia do mesmo mal, e feneceu.
O silêncio tomou finalmente conta daquele território condenado, mas o medo continuava a ter ossos e dentes, era um corpo oculto que se expandia para reclamar a posse de todos os pedaços da propriedade aniquilada. A casa morreu sem ter medo da morte, e viveu sem receios enquanto se manteve de pé. Foi de uma virtude sem igual. Estava necessitada de trabalhos, mas a doença tomou conta dela antes que alguém se tivesse preocupado em recuperar-lhe a nobreza de outrora.

Álvaro chegou muito tarde, chegou cansado, exausto, com a maleita a tomar conta do corpo que ia cantando. Não verteu uma única palavra, ficou seduzido pelo descanso que em breve chegaria. Álvaro deitou-se, empolgado pela possibilidade de que aquela talvez fosse a última vez que sentiria a cama áspera e tão dura.
A fúria dos mares não o tinha conseguido derrotar, apesar de ter deixado em muito mau estado as naus onde todos navegaram. O mostrengo cedeu mas deixou marcas muito profundas nas caravelas corajosas que o resolveram enfrentar, e foram muitos os que acabaram por falecer. Depois chegou o escorbuto que derrotou ainda mais companheiros no lado oriental da costa africana, já com o Índico por companhia.
As primeiras cordialidades bem cedo deram lugar ao crescimento da suspeita. As desconfianças entre os povos, uns mouros, outros cristãos, resultaram em fortes desavenças, em intrigas, em reféns, em raivas incontidas. Assim davam a conhecer uns aos outros de que eram feitas as suas entranhas. Eram muitos os perigos, e cresciam sempre que os navios se aproximavam de terra. Todos foram transformados pela grandiosa epopeia, e nem a glória desse feito conseguiu amenizar a ferocidade com que os fantasmas os passaram a visitar.
Dos pesadelos de Álvaro, havia um que se repetia com bastante regularidade. Ele surgia amarrado a um poste, no centro de uma grande praça, para que todos ao longe o pudessem ver, e para que todos ao perto lhe conseguissem cheirar o medo. Ali estava o herege, o bruxo, o aliado de satanás, como faziam questão de gritar os aldeões com os olhos a chispar.
- Ateiem-lhe as chamas! Arranquem-lhe os olhos pois o verme jamais aceitará a redenção! – bradava a população extasiada.
De cabelo curto e mal cortado, com a cabeça ferida a golpes de navalha, Álvaro sorria inocentemente enquanto exclamava, a olhar o céu como Jesus, que os perdoassem, pois o povo não sabia o que fazia. Implacável, a morte chegava para confirmar aquilo que Álvaro já sabia. Nesse instante, a voz de uma donzela, que também tinha sido morta pelas chamas por ter sido considerada bruxa e feiticeira, chamava por ele do outro lado da grande praça. Dava-lhe força e a coragem necessária para aguentar a terrível provação.
O povo não se cansava de gritar o seu nome, o povo nunca se cansava, e insistia que estava para breve o seu regresso ao centro da terreiro para voltar a ser atado ao poste para ser queimado em frente de todos, num perpétuo pesadelo.
Álvaro começou a estimar a companhia da morte. Todos os dias, nos seus pesadelos, ela chegava para o levar. Depois de ser queimado, era abandonado num longo corredor onde também repousava o corpo da feiticeira donzela. As vísceras de dezenas de corpos estavam por ali espalhadas numa amálgama de intestinos, fígados, estômagos, corações e pulmões. Os cérebros tinham sido retirados aos cadáveres antes de os atirarem para aquele lugar. Uma noite, o pesadelo repetiu-se várias vezes e os olhos de Álvaro começaram a ficar vermelhos. Não descansava há mais de três dias, trazia as pernas, as mãos, e os dedos inchados. Queria dormir, mas aquele era o único descanso que lhe era permitido.
Aprendeu a sentir a presença da dama de negro.
O velho marinheiro deitou-se, por instantes, na cama que o viu nasceu, a ele e à irmã Adelaide. Deitou-se e adormeceu profundamente. Dona morte não conseguiu esconder um sorriso, desejou ceifar-lhe a vida, mas conteve-se. Aquela ainda não era a sua hora. Tocou-lhe no ombro com delicadeza. Ele teve uma apneia tão grande que quase o vitimou. Levantou-se, ofegante e assustado. Ficou mais atento do que nunca. Esqueceu o cansaço. Doía-lhe o corpo, a cabeça, e doía-lhe terrivelmente a garganta que ficou seca e ressequida. Tossiu com muita aflição. Já passava das três e meia da manhã quando conseguiu descansar.
Álvaro falava enquanto dormia. Dizia coisas muito desinteressantes. Falava, falava muito, falava demais. A voz saía-lhe nasalada e aguda, irritante. Palavras de marinheiro, conversas fúteis quase sem sentido. Ele nem se apercebia. Agarrava-se a intervalos constantes àquelas frases que extraia dos sonhos e pesadelos, de todos os sonhos e de todos os pesadelos, por mais banais que elas fossem. A sua vida dependia disso. Dona morte gostava de ouvir aqueles diálogos insignificantes e ficava por ali, sentada numa cadeira, de braços cruzados, a escutá-lo. Queria saber tudo acerca de todas as coisas, e sorria. Quando ele se calava, passava-lhe as mãos nos cabelos para que tudo se repetisse de novo. Álvaro acordava, tossia um concerto de roncos aflitos, e desertava mais uma vez da cama que o viu nascer.
Os sorrisos da morte transformaram-se em gargalhadas graves e fortes.
Naquela noite o marinheiro entendeu por bem não regressar mais ao seu quarto. Os pesadelos repetiam-se com tanta frequência que ele já não sabia o que fazer, e uma aspereza amarga invadiu-lhe a garganta e a boca. Jurou ter escutado uma risada. Só podia ser fruto da sua imaginação. Estava quase à beira da loucura.

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