quarta-feira, 24 de setembro de 2014

04 - NO INÍCIO, ERA A VIAGEM




Hoje vou mudar de vida. Acordei e resolvi que assim tinha de acontecer, fazer somente o que me apetecer e deixar de valorizar as opiniões dos outros. Vou obedecer aos meus pensamentos e colocar em prática tudo aquilo que eles me ordenarem com total satisfação. Chegou a hora de deixar acontecer esta pessoa que tenho mantido cativa e de abdicar da carapaça pardacenta que lhe tem servido de aconchego.
Um velho escritor disse-me, um dia, que esta hora teria de chegar, caso contrário estaria condenado a viver para sempre uma mentira.
Vou mergulhar até às profundezas do grande lago. Hoje posso escolher e sei que o devo fazer. Encontrarei os meus novos companheiros de viagem no fundo das suas águas tranquilas. Tenho saudades das histórias desse velho escritor. Recordo-o com carinho.
O mar não me assusta. Mais do que quebrar ou intimidar, ele amarra as almas dos viajantes umas às outras transformando os marinheiros em seres bem diferentes dos demais. O mar e o sol e as tempestades e as doenças são servidas em malgas de dor e de traição. Em cada nova refeição a pele fica em carne viva, e desaparece durante meses, tal como a terra. Esquecemo-nos dos cheiros e das cores. Nos primeiros dias de viagem todos nós sonhamos e sentimos os sabores de que ela se cultiva.
Hoje acordei com vontade de ser protagonista da epopeia, mesmo sabendo que a viagem pode terminar em tragédia, mesmo sabendo que o mais certo é acabar transformado em estátua de pedra no fundo deste imenso lago que separa os povos do mundo. Hoje acordei sabendo que esse é o meu desejo, porque hoje é o dia em que decidi mudar de vida e me sinto mais vivo do que nunca. O corpo, de tão leve, paira no ar como uma folha embalada pela brisa do Tejo.
Dezenas de homens sobem aos navios carregando mantimentos tão pesados às costas que até bestas vergariam. Mas cantam e respiram como podem para amenizar as dores e o cansaço.
No coração de um oceano cabem todos os silêncios. Meses inteiros são gastos com o mar como horizonte. Este é um lago gigantesco, é um lago do tamanho do mundo. Milhares de bosques e de florestas ocupariam os espaços habitados pelas suas ondas crispadas.
Quantos foram os silêncios que nele já se afogaram?
Vislumbro as cores, as sombras e as cambiantes da alma, todas elas se assemelham às dos meus camaradas de viagem. Compreendo os seus receios. Por vezes escuto a voz gélida da morte que nos visita a horas descabidas.
Os ossos e o sangue que me animam não adivinham quantas são as estátuas que povoam as profundezas do grande lago.
Esta é a aventura de que necessito para compreender quem sou.
Quando acordei para embarcar na aventura sabia os riscos que corria.
A caverna onde me abrigava era mil vezes pior do que o somatório de todos estes perigos.
Vou mergulhar.
Vejo-te.
És a onda que oferece à nau estes beijos salgados.
Este será o tempo que conquistarei à vida para não morrer sem me ter compreendido.

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