terça-feira, 4 de novembro de 2014

10 - AQUI SABEMOS QUEM SOMOS


O mar não nos perdoa a blasfémia. Esta ousadia transformou o rei oceano em cordilheiras de espuma salgada. São centenas de montanhas negras, furiosas, quase intransponíveis, que vamos subindo e descendo ao sabor dos seus humores. O senhor dos mares esfrega as mãos de contentamento, diverte-se como nunca neste jogo que criou para nos testar.
- Lucifer, meu comandante, o demónio vive nestas ondas! Afinal o inferno é salgado, é húmido e negro, é este oceano escondido aqui no fim do mundo. Os nossos não conseguirão combatê-lo por muito mais tempo. Estão exaustos, meu comandante, e as naus deixam entrar mais água do que aquela que conseguimos expulsar. Só pode mesmo ser o diabo a habitar estas águas, pois jamais batalhámos contra um mar tão cruel e destruidor.
As barcaças rangem como nunca. A morte e o medo, e o medo da morte, conseguiram transformá-las nesta coisa húmida feita de ossos e de dentes que o mar se encarrega de atormentar. As naus rangem como nunca, parece que se vão desagregar, rangem como os dentes e os ossos e o medo, que também tem ossos e dentes e range o mesmo que os corpos destes marinheiros destemidos. Se Álvaro Abreu de Vasconcelos soubesse escrever, diria que o medo é este imenso corpo invisível que agora comanda a epopeia.
- És tu outra vez, não é verdade? Sinto-te aí em cima, escuto os teus risinhos gélidos. Ao contrário de ti, nós que aqui lutamos possuímos sangue e carne e esta coragem imensa que nos permite beijar todas as ondas e marés atiçadas pelo demónio. As estátuas de pedra disseram-me que não seremos derrotados. Escutei, com atenção, as histórias contadas por essas figuras que vivem nos bosques profundos do grande lago. Através dos seus silêncios, contaram-me a verdade acerca do que está prestes a acontecer. Não seremos derrotados por estas forças obscuras que se engrandeceram à nossa passagem. Os nossos pequenos marinheiros possuem uma coragem inaudita e não sabem viver uma vida sem sentido. Foi por isso que eu embarquei. É aqui, no coração destes confrontos, que nos sentimos mais vivos que nunca. No meio destas batalhas sabemos quem somos, e sabemos que estamos vivos, ao contrário de ti. Possuímos corpos e carnes por onde rios vermelhos vão fluindo. Eles dão-nos esta capacidade inesgotável para te enfrentar como se fossemos teus iguais.
As estátuas de pedra existem apenas na fértil imaginação de Álvaro de Vasconcelos. O homem acredita tanto nas suas aliadas que, sem grande dificuldade, faz com que muitos dos seus companheiros passem a acreditar nelas e na sua competência. É assim que em todas as naus a maioria dos tripulantes sente as forças a regressar. As embarcações rangem em uníssono, preparam-se para enfrentar as poderosas forças do destino. Um ruído insuportável avança imparável contra todos os barulhos dos mares, dos ventos e das tempestades. A chuva intensa não dá tréguas, os trovões rugem nos céus mas o comandante, num assomo de loucura, manda carregar os canhões uma e outra vez. As armas são disparadas contra as ondas ferozes que chegam a ultrapassar, em altura, muitas das serras lusitanas.
- Mantenham-se atentos! Vamos ter de continuar a lutar, custe o que custar! Trago as mãos coladas ao leme do navio, mas necessito de ajuda para conseguir manter a rota. Depressa, alguém que me ajude a manter o barco estável nesta nova direção. A salvação pode muito bem encontrar-se já ali adiante, a poucas milhas daqui, mas temos de conseguir manter o timão bem firme pois disso depende a nossa salvação. Não nos podemos afastar desta linha que tracei. Alguém comunique aos outros barcos para que nos sigam, rápido, antes que seja tarde demais.
Álvaro de Vasconcelos observa, com olhos delirantes, duas gigantescas estátuas de pedra a surgirem por debaixo das quatro embarcações. Dona morte deixa de sorrir. Isto que ele vê, mais ninguém enxerga, mas depressa tudo se apaga da sua memória como se não tivesse acontecido. O marinheiro caminha até ao comandante Vasco da Gama e agarra-se ao leme com toda a força e confiança.
- Vamos conseguir, meu comandante! Aqui estou para o ajudar a manter o leme seguro. Vai ver que não nos afastaremos nem um grau da rota confirmada.  Vamos conseguir, meu comandante, tenhamos fé!
As ondas já não chegam lá ao alto onde Dona morte ainda há pouco se sentava. A dama deixou mesmo de sorrir, e abalou.


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