domingo, 23 de novembro de 2014

12 - O REINO DOS SILÊNCIOS


As poderosas estátuas permanecem iluminadas enquanto observam, sorridentes, a navegação pacífica das quatro embarcações. Continuam a oferecer-lhes uma surpreendente guarda de honra. As naus velejam por águas mais tranquilas e as mãos ensinadas do capitão-mor já não precisam da ajuda do corajoso marinheiro para manter estável a rota do navio. Álvaro afasta-se da grande torre, muito apressado. Tem pressa, não sabe porquê. Talvez tenha receio que as portas do mar se voltem a fechar.
- Tenho de descobrir os segredos escondidos nas profundezas deste lago oceano, entender quem são estas imensas estátuas cor de coral que mais ninguém avista. Porque me chama o mar?
Álvaro afasta-se de Vasco da Gama sem que ele se aperceba, pois grande é o seu contentamento. O marinheiro aproveita-se da distração de todos para entrar pelas portas do mar adentro, sem hesitar. O lago recebe-o, eis que o amigo regressa a casa. Ali mergulha uma estátua viva cheia de curiosidade.
O navegante tenta perceber a verdadeira dimensão deste lago imenso que o decidiu poupar. As ondas regressam a dimensões menos assustadoras  e agradecem ao nadador a rápida resposta, enquanto as naus se vão afastando. Álvaro já não as poderá alcançar.
- Sou um ser solitário, o mar é este ser solitário que eu amo por ser tão solitário como eu. O lago chamou-me, recebe-me, aqui estou! Todos os ruídos desaparecerão assim que eu mergulhar no seu aconchego. As estátuas de coral acompanhar-me-ão. Pretendo ser como elas, um ser solitário, escondido de tudo aquilo que existe.
Foi para viver esta experiência que Álvaro embarcou, quer descobrir os segredos das cidades construídas nas profundezas do lago misterioso, e se chegou até aqui, é porque a jornada corre como previsto.
- Estou preparado para visitar as profundidades mais sombrias onde habitam estas companheiras de viagem, estátuas, tal como eu. Tinha a certeza que seria por estas latitudes que as viria encontrar, e elas ajudar-me-ão nesta descida.
Foram muitas as vozes que gritaram por Álvaro, mas a sua decisão estava tomada. Antes que se pudesse arrepender, nadou na direção contrária à das embarcações, até ao lugar onde as ondas o abraçaram. O marinheiro mergulhou acompanhado por duas estátuas de coral que o ensinam a respirar.
No fundo do mar a solidão sente-se com maior intensidade. Torna-se difícil descrever tanto vazio. A água fria faz ranger os ossos do corpo e até a luz sente dificuldade em mergulhar. Pequenas gotículas brilhantes dissipam-na em mil pedaços e transportam-na para outros lugares do imenso oceano. Poucas são as gotas que conduzem a luminosidade até ao fundo do lago onde o frio corta tanto como o medo. A Álvaro nada mais resta senão esperar. As estátuas de coral observam a sua aflição enquanto o ensinam a respirar debaixo de água. Ele não entende como deve proceder. Dizem-lhe para ficar quieto, deverá permanecer calmo se quiser sobreviver debaixo das ondas do mar oceano. O navegante fecha-se dentro do casulo que é o seu corpo, isolado do exterior. Deixa de resistir, abandona-se, e é então que tudo se torna mais fácil e ele começa, finalmente, a respirar. Surgem-lhe as lágrimas e uma clarividência que ele jamais sonhou possuir. Mais lágrimas se juntam às primeiras e a todas as lágrimas do grande lago. Tem de conseguir manter-se corajoso ao longo de todo o processo de descida. No início, os pulmões enchem-se de água e o estômago fica pesado com tanto sal. O início é o pior dos instantes. A concha que o recebeu fica nervosa, e esse seu nervosismo é contagioso e perturba.
Álvaro tem o seu primeiro contacto com o mais puro dos silêncios.
Um curto instante.
A luz e as trevas misturam-se enquanto ele decide se deve continuar a responder afirmativamente aos apelos do mar.
Estava mais seguro a bordo da São Gabriel quando enfrentava a fúria das tempestades do mundo. Sentia-se mais protegido enquanto lutava, esperançoso, contra aquela imensa loucura. Foi durante a batalha que teve a consciência de que alguma coisa tinha de fazer para tentar sossegar a extrema irritação do oceano. Prometeu-lhe que se entregaria à sua vontade e que regressaria à entrada daquela cidade subaquática, reino da rainha negra. Foi isso que ele fez, uma promessa.
- A minha irmã mais velha sempre me achou louco, um doido varrido. Chamava-me parvo, e dizia que eu fazia coisas que não lembravam nem ao diabo. Se ela agora me pudesse ver, que nomes me chamaria?
Álvaro conseguiu dominar a respiração debaixo de água. A primeira vez que o fez, sentiu um choque tremendo. Apontaram-lhe dois fuzis aos pulmões, e dispararam. As balas cortaram as águas, penetraram-lhe as carnes junto às clavículas, que logo se partiram em pedaços, e saíram pelas costas rasgando-lhe as omoplatas. As dores que sentiu não eram deste mundo.
Grita!
Abre a boca num esgar de dor e as águas do oceano, que lhe tinham invadido as entranhas, são expelidas.
Grita, de novo.
Grita um grito que ninguém escuta.
As duas estátuas cor de coral observam-no, com atenção. Dão conta do seu progresso e esboçam um sorriso.
Grita, muito alto, e num tom cada vez mais agudo.
Ninguém o escuta, nada nem ninguém o virá aqui encontrar.
- Este é o reino dos silêncios, é onde aprendemos a respirar. Aqui ninguém aponta ou nos informa acerca do que cá podemos encontrar. Ainda bem que eu embarquei, for por tudo isto que eu resolvi trocar o certo pelo incerto.

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