domingo, 30 de novembro de 2014

14 - AQUI REINA A VOZ DO MAR


Álvaro alcança um abrigo solitário mantendo a respiração estável e ritmada. Foi com extrema dificuldade que conseguiu chegar, são e salvo, a estas profundezas. Aqui no fundo a pressão é tremenda, e tem como aliadas a escuridão, o frio, o silêncio e um vazio quase infinito. As guardiãs de coral depositaram-no num lugar destinado a foragidos fora da lei que se dedicavam a inventar e espalhar falsidades pelos quatro cantos do mundo conhecido. Álvaro não é estátua e não compreende o que lhe está a acontecer. Foi-lhe impossível resistir ao timbre encantador da voz do mar, que o enfeitiçou, e ele teve de lhe obedecer. Agora é um prisioneiro do lago que o quis receber.
As guardiãs de coral apagam as tochas que iluminaram a descida, deixam de sorrir e afastam-se, velozes, desta planície sem fim.
As estátuas prisioneiras que aqui foram colocadas encontram-se separadas por espaços imensuráveis. Estão inertes e pensativas, esquecidas até pelo tempo que deixou de passar por aqui.
- Possam os meus companheiros chegar, são e salvos, a um porto seguro. Foi por eles que troquei o certo pelo incerto. Fiz a vontade ao mar. Acabou-se o tempo, acabaram as preocupações. Sou um viajante do meu sonho, tal como previ. Tudo passará a ser bem mais simples, de agora em diante. Sou este alguém que outrora compreendeu as impercetíveis alterações das brisas e das marés que perfumavam a viagem. Através delas consegui chegar ao fundo deste mar oceano onde respiro. Aqui recordo esses sinais que me chegavam, quase sempre, sem aviso. Se Adelaide me pudesse ver, se soubesse onde me encontrar, aos berros, chamar-me-ia de louco.
Eis que o imperatriz de chumbo chega para reclamar o seu império. Avança na escuridão que murmura à sua passagem. O silêncio é derrotado, e por debaixo dos pés de Álvaro o chão começa a ranger da mesma maneira como rangem os dentes, os ossos e o medo, que range o mesmo que o corpo sente. Um ruído insuportável agita as águas escuras do grande lago gerando um turbilhão de espuma, de pedras e de areia. As estátuas, outrora apartadas por distâncias incalculáveis, são atraídas pelo fenómeno que as arrasta, suga, e empurra, umas contra as outras, com extrema facilidade. Uma montanha de estátuas empilhadas rola no centro da forte corrente marítima que se formou. A estridência é tanta que fere os ouvidos do marinheiro. Álvaro fica momentaneamente surdo ao escutar o silvo mais agudo de que há memória, e desfalece.

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