domingo, 23 de novembro de 2014

13 - OS FORAGIDOS MENTIROSOS


Álvaro procura nas águas o oxigénio de que necessita para respirar. Quando este lhe chega e o inunda, é tal e qual uma estrela a nascer-lhe no peito. Ele sente o conforto necessário para continuar a aventurar-se, nesta escuridão, por entre paisagens quase invisíveis. O fundo do lago pulsa, de quando em vez, num brilho ténue, em nuances cintilantes que dele se escapam.
Milhares de estátuas de foragidos foram carregadas até aqui por estátuas cor de coral, que deslizaram por entre as marés. Serviam muitas mentiras aos loucos, que nelas acreditavam, e lhes agradeciam as histórias contadas. Eram simples mortais, ávidos de enredos e peripécias, a quem contavam falsidades transfiguradas em contos atrativos. Os foragidos olhavam para os loucos e, com vozes afinadas, narravam-lhes as falsidades de maneira impiedosa. Séculos de falsos contadores de histórias encontram-se semeados nesta zona profunda do leito do lago formando um imenso campo de estátuas toscamente esculpidas.
Álvaro é atacado por um vírus estranho que o impede de ver e de imaginar. O sol não comparece às reuniões nesta eterna madrugada. Ele começa a ficar dormente com o frio intenso que lhe tolda os movimentos. Aqui em baixo a realidade deixa de fazer sentido.
Os loucos mais sérios acreditaram em todas as histórias mentirosas que lhes foram contadas, mas o marinheiro nunca acreditou, até deixar de ser e de sentir.
A irmã bem o avisou.
Chamava-o de louco pois ele dizia, a todos os que o escutavam, somente a verdade daquilo que sentia, e gostava de percorrer todos os caminhos num constante desalinho. Nesses passeios chegou a ficar desaparecido por dias a fio. Queria descobrir novos abismos, túneis secretos que pudessem estar escondidos em grutas inexploradas ou atrás de paredes subitamente desabadas. Quando regressava dos passeios, ficava muito calado, e guardava as aventuras numa caixa gelada construída no fundo do seu coração de pedra. Depois deitava-se na mesma cama que o viu nascer, e ali ficava a olhar nuvens imaginárias e a sorrir. Tudo desaparecia enquanto ele permanecia naquele estado de aparente loucura.
A irmã insistia.
Abanava-o.
Perguntava-lhe, vezes sem conta, o que tinha feito e por onde tinha andado. Álvaro respondeu-lhe uma única vez, e foram palavras sem nexo, o que fez com que ela ficasse ainda mais convencida da loucura do irmão.
- Subi e desci! Voltei a caminhar, a bom ritmo, e a paisagem desapareceu. Posso tentar explicar-te, o melhor que posso, esta minha experiência, mas não sei se conseguirei convencer-te que vi aquilo que não existe. Escutei, e voltei a perder-me! Não era ninguém. Sonhei! Vês, eu bem te disse, não sou capaz de te explicar o que foi que me aconteceu. Só nascem frases sem sentido. Estava eu a percorrer estradas iluminadas pelo sol, bem para lá das grandes planícies. Subi, e desci! Deixei-me levar pelo sono, fiquei cansado e repousei junto a um pátio onde recordei coisas do passado, memórias de coisas simples, mensagens há muito esquecidas.
A irmã ficou aflita. Álvaro disse-lhe estas coisas quase sem sentido após ter percorrido, em desalinho, as estradas que lhe roubaram, de uma vez por todas, a sanidade mental. Ele insistia em dar-lhe respostas, naquele dia tinha sido atacado por uma súbita vontade de responder às perguntas da irmã.
- Foi um sonho que me indicou o caminho, um sonho bom com diálogos que esqueci. Aqueceu-me enquanto repousei naquele pátio em tons de azul. Senti-me em casa todo o tempo que por lá permaneci. Gosto de me sentir em casa, gosto de sonhar. Olhas-me como se eu fosse um estranho. Nesse sonho estávamos a brincar, tu e eu, até que me faltou o ar. Deixei de conseguir respirar, deixei de te ver, e mal sentia o corpo. O medo invadiu-me, ninguém sabia quem eu era nesse sonho, só tu, e eu voltei atrás para te procurar. Foi então que as ondas gigantescas de um mar enfurecido tomaram conta do sonho e roubaram o pouco ar que eu respirava. Lutei como podia para sobreviver, mas o mar castigou-nos, sorriu, e depois salvou-nos. Tudo o que o mar nos fez, fez a sorrir, com a dona morte sempre ao seu lado.
O fundo do lago revela-se cruel.
Álvaro tem dificuldade em voltar a acreditar. Aqui, alguém pensou que ele era apenas mais um desses foragidos, um falso contador de histórias igual a tantos outros que aqui vieram colocar. O seu lugar já se encontra preparado para o receber. Tal como nesse sonho antigo, o medo invade-o. Aqui, neste lugar, ninguém sabe quem ele é, e preparam-se para o transformar em mais uma estátua prisioneira.
A irmã bem que o avisou!
 

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