Álvaro procura nas águas o oxigénio de que necessita
para respirar. Quando este lhe chega e o inunda, é tal e qual uma estrela a
nascer-lhe no peito. Ele sente o conforto necessário para continuar a aventurar-se,
nesta escuridão, por entre paisagens quase invisíveis. O fundo do lago pulsa,
de quando em vez, num brilho ténue, em nuances cintilantes que dele se escapam.
Milhares de estátuas de foragidos foram carregadas
até aqui por estátuas cor de coral, que deslizaram por entre as marés. Serviam muitas
mentiras aos loucos, que nelas acreditavam, e lhes agradeciam as histórias
contadas. Eram simples mortais, ávidos de enredos e peripécias, a quem contavam
falsidades transfiguradas em contos atrativos. Os foragidos olhavam para os
loucos e, com vozes afinadas, narravam-lhes as falsidades de maneira impiedosa.
Séculos de falsos contadores de histórias encontram-se semeados nesta zona
profunda do leito do lago formando um imenso campo de estátuas toscamente
esculpidas.
Álvaro é atacado por um vírus estranho que o impede
de ver e de imaginar. O sol não comparece às reuniões nesta eterna madrugada. Ele
começa a ficar dormente com o frio intenso que lhe tolda os movimentos. Aqui em
baixo a realidade deixa de fazer sentido.
Os loucos mais sérios acreditaram em todas as
histórias mentirosas que lhes foram contadas, mas o marinheiro nunca acreditou,
até deixar de ser e de sentir.
A irmã bem o avisou.
Chamava-o de louco pois ele dizia, a todos os que o
escutavam, somente a verdade daquilo que sentia, e gostava de percorrer todos
os caminhos num constante desalinho. Nesses passeios chegou a ficar
desaparecido por dias a fio. Queria descobrir novos abismos, túneis secretos
que pudessem estar escondidos em grutas inexploradas ou atrás de paredes
subitamente desabadas. Quando regressava dos passeios, ficava muito calado, e
guardava as aventuras numa caixa gelada construída no fundo do seu coração de
pedra. Depois deitava-se na mesma cama que o viu nascer, e ali ficava a olhar
nuvens imaginárias e a sorrir. Tudo desaparecia enquanto ele permanecia naquele
estado de aparente loucura.
A irmã insistia.
Abanava-o.
Perguntava-lhe, vezes sem conta, o que tinha feito e
por onde tinha andado. Álvaro respondeu-lhe uma única vez, e foram palavras sem
nexo, o que fez com que ela ficasse ainda mais convencida da loucura do irmão.
- Subi e desci! Voltei a caminhar, a bom ritmo, e a
paisagem desapareceu. Posso tentar explicar-te, o melhor que posso, esta minha
experiência, mas não sei se conseguirei convencer-te que vi aquilo que não
existe. Escutei, e voltei a perder-me! Não era ninguém. Sonhei! Vês, eu bem te
disse, não sou capaz de te explicar o que foi que me aconteceu. Só nascem
frases sem sentido. Estava eu a percorrer estradas iluminadas pelo sol, bem
para lá das grandes planícies. Subi, e desci! Deixei-me levar pelo sono, fiquei
cansado e repousei junto a um pátio onde recordei coisas do passado, memórias
de coisas simples, mensagens há muito esquecidas.
A irmã ficou aflita. Álvaro disse-lhe estas coisas quase
sem sentido após ter percorrido, em desalinho, as estradas que lhe roubaram, de
uma vez por todas, a sanidade mental. Ele insistia em dar-lhe respostas,
naquele dia tinha sido atacado por uma súbita vontade de responder às perguntas
da irmã.
- Foi um sonho que me indicou o caminho, um sonho
bom com diálogos que esqueci. Aqueceu-me enquanto repousei naquele pátio em
tons de azul. Senti-me em casa todo o tempo que por lá permaneci. Gosto de me
sentir em casa, gosto de sonhar. Olhas-me como se eu fosse um estranho. Nesse
sonho estávamos a brincar, tu e eu, até que me faltou o ar. Deixei de conseguir
respirar, deixei de te ver, e mal sentia o corpo. O medo invadiu-me, ninguém
sabia quem eu era nesse sonho, só tu, e eu voltei atrás para te procurar. Foi
então que as ondas gigantescas de um mar enfurecido tomaram conta do sonho e
roubaram o pouco ar que eu respirava. Lutei como podia para sobreviver, mas o
mar castigou-nos, sorriu, e depois salvou-nos. Tudo o que o mar nos fez, fez a sorrir,
com a dona morte sempre ao seu lado.
O fundo do lago revela-se cruel.
Álvaro tem dificuldade em voltar a acreditar. Aqui,
alguém pensou que ele era apenas mais um desses foragidos, um falso contador de
histórias igual a tantos outros que aqui vieram colocar. O seu lugar já se
encontra preparado para o receber. Tal como nesse sonho antigo, o medo
invade-o. Aqui, neste lugar, ninguém sabe quem ele é, e preparam-se para o
transformar em mais uma estátua prisioneira.
A irmã bem que o avisou!
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