Alguma loucura foi acrescentada à sua estranha forma de agir e de pensar.
Certa noite, Álvaro lembrou-se de ensaiar um bailado de difícil concretização
para tentar suportar tanto mar e tanto azul. O espírito e o corpo despediram-se,
voaram, sonâmbulos, para mundos diferentes. O marinheiro bailarino atravessou a
nau, da proa até à ré, saltando por cima dos companheiros que dormiam, pois
aquelas não eram horas para chulas, viras ou fandangos. Dançou para conseguir
resistir, e ao fazê-lo recordava a água da ribeira a passar por si, a avançar
de encontro ao rio, depois ao mar. Ele apreciava aquela maneira quente de
adocicar a alma, com o olhar fixo no infinito das noites equatoriais. Avançou,
como um fantasma, pelo meio dos homens, de braços levantados e pernas ligeiras.
Praticou as coreografias em silêncio, tal e qual como uma sombra bizarra, e
assim acalmou o espírito.
Voou!
Viveu numa noite muito mais do que os seus camaradas a vida inteira.
Fugiu!
Partiu para longe, lançando os punhos para a frente contra as trevas.
Pontapeou-a!
Os pontapés saíam certeiros, fortes e ferozes, e ele sozinho não estava
porque bailava.
Cresceu!
As mãos agigantaram-se, ondulantes, e acariciaram o ar fresco e húmido da
madrugada. O marinheiro reduziu a pó a sua insignificância, e sentiu-se mágico,
eterno e poderoso.
Sorriu!
Gostou do que sentiu.
A embarcação ganhou vida e as coisas, finalmente, começaram a fazer algum
sentido. Os homens acordaram, viram-no e acharam que Álvaro tinha dado em
maluco. O seu corpo transpirado brilhou na noite de lua cheia, exibindo
músculos cor de marfim. Os navegadores, que nunca tinham visto uma dança assim,
ficaram extasiados a assistir.
Álvaro encantava-os todas as noites em que se decidia tornar imortal.
Galopou! Dançou! Correu! Saltou, de um lado para o outro, desenfreado, e
rodopiou mais de uma centena de vezes. Alguns oficiais acorreram para assistir
ao esplêndido espetáculo. Duas ou três horas depois, os pés sangraram, tal como
todos os dedos, e marcaram no soalho a bela coreografia.
Antes de terminar a atuação, anichou-se, abraçou os joelhos e colocou a
cabeça no meio das pernas encolhidas.
Ninguém se atreveu a despregar os olhos do dançarino.
Era quase manhã quando um vento forte assobiou, vindo do norte, e as velas
das naus engalanaram-se, imponentes, criando um palco ímpar para a dança do
navegante. O momento mais alto ainda estava para chegar.
Álvaro levantou-se, num grande salto vertical.
Riscou o céu, leve e feliz, a escutar aquela espécie de música que o
obrigava a dançar.
Abriu as mãos aos ventos, esticou a perna esquerda para cima e assentou a
outra no chão, mantendo o equilíbrio apenas com os dedos do pé direito, que
giravam, criando um pequeno e perfeito círculo avermelhado. Parecia que os
músculos não lhe doíam. Os seus impressionantes movimentos causaram tal
deslumbramento que muitos pensaram que com eles tinha embarcado um anjo
bailarino.
Nuvens escuras do tamanho do mundo cobriram o céu, e o vento cresceu de
intensidade. A tempestade preparava-se para lhes pregar o maior susto de suas
vidas.
As coisas belas e perfeitas não perduram tempo nenhum, e os marinheiros
estavam sempre prontos para se encontrarem cara a cara com o destino.
Naquela noite, mais uma vez, Álvaro sonhou.
O seu corpo brilhou muito antes do dia nascer.
Com o sangue ainda a palpitar-lhe nas veias, naquela noite todos sonharam
com ele, e todos se tornaram imortais.
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