sexta-feira, 10 de abril de 2015

73 - A DANÇA DO IMORTAL


Alguma loucura foi acrescentada à sua estranha forma de agir e de pensar. Certa noite, Álvaro lembrou-se de ensaiar um bailado de difícil concretização para tentar suportar tanto mar e tanto azul. O espírito e o corpo despediram-se, voaram, sonâmbulos, para mundos diferentes. O marinheiro bailarino atravessou a nau, da proa até à ré, saltando por cima dos companheiros que dormiam, pois aquelas não eram horas para chulas, viras ou fandangos. Dançou para conseguir resistir, e ao fazê-lo recordava a água da ribeira a passar por si, a avançar de encontro ao rio, depois ao mar. Ele apreciava aquela maneira quente de adocicar a alma, com o olhar fixo no infinito das noites equatoriais. Avançou, como um fantasma, pelo meio dos homens, de braços levantados e pernas ligeiras. Praticou as coreografias em silêncio, tal e qual como uma sombra bizarra, e assim acalmou o espírito.
Voou!
Viveu numa noite muito mais do que os seus camaradas a vida inteira.
Fugiu!
Partiu para longe, lançando os punhos para a frente contra as trevas.
Pontapeou-a!
Os pontapés saíam certeiros, fortes e ferozes, e ele sozinho não estava porque bailava.
Cresceu!
As mãos agigantaram-se, ondulantes, e acariciaram o ar fresco e húmido da madrugada. O marinheiro reduziu a pó a sua insignificância, e sentiu-se mágico, eterno e poderoso.
Sorriu!
Gostou do que sentiu.
A embarcação ganhou vida e as coisas, finalmente, começaram a fazer algum sentido. Os homens acordaram, viram-no e acharam que Álvaro tinha dado em maluco. O seu corpo transpirado brilhou na noite de lua cheia, exibindo músculos cor de marfim. Os navegadores, que nunca tinham visto uma dança assim, ficaram extasiados a assistir.
Álvaro encantava-os todas as noites em que se decidia tornar imortal.
Galopou! Dançou! Correu! Saltou, de um lado para o outro, desenfreado, e rodopiou mais de uma centena de vezes. Alguns oficiais acorreram para assistir ao esplêndido espetáculo. Duas ou três horas depois, os pés sangraram, tal como todos os dedos, e marcaram no soalho a bela coreografia.
Antes de terminar a atuação, anichou-se, abraçou os joelhos e colocou a cabeça no meio das pernas encolhidas.
Ninguém se atreveu a despregar os olhos do dançarino.
Era quase manhã quando um vento forte assobiou, vindo do norte, e as velas das naus engalanaram-se, imponentes, criando um palco ímpar para a dança do navegante. O momento mais alto ainda estava para chegar.
Álvaro levantou-se, num grande salto vertical.
Riscou o céu, leve e feliz, a escutar aquela espécie de música que o obrigava a dançar.
Abriu as mãos aos ventos, esticou a perna esquerda para cima e assentou a outra no chão, mantendo o equilíbrio apenas com os dedos do pé direito, que giravam, criando um pequeno e perfeito círculo avermelhado. Parecia que os músculos não lhe doíam. Os seus impressionantes movimentos causaram tal deslumbramento que muitos pensaram que com eles tinha embarcado um anjo bailarino.
Nuvens escuras do tamanho do mundo cobriram o céu, e o vento cresceu de intensidade. A tempestade preparava-se para lhes pregar o maior susto de suas vidas.
As coisas belas e perfeitas não perduram tempo nenhum, e os marinheiros estavam sempre prontos para se encontrarem cara a cara com o destino.
Naquela noite, mais uma vez, Álvaro sonhou.
O seu corpo brilhou muito antes do dia nascer.
Com o sangue ainda a palpitar-lhe nas veias, naquela noite todos sonharam com ele, e todos se tornaram imortais.

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