quarta-feira, 22 de abril de 2015

77 - PARA ALÉM DO BOJADOR


Será possível? Estarão os marinheiros a alucinar? O mais que provável naufrágio não aconteceu! Em boa altura os ventos que carregavam a morte aos ombros, tal como os seus odores, desapareceram, mercê de um sortilégio improvável. Se a tormenta durasse mais alguns instantes, ninguém teria sobrevivido.
Quase todos os homens tinham deixado de acreditar na salvação, e bem poucos foram aqueles que nela sempre confiaram. Resistiram, como podiam, segurando-se às partes mais palpáveis daquela realidade escura, fria e ameaçadora. Os seus corpos gelados ficaram secos de esperança, e todas as ideias lhes pareciam inúteis. Dona morte divertiu-se a afagá-los por mais de uma vez, deixando que os seus bichos medonhos lhes conquistassem as almas a roubassem a última réstia de esperança. Perceberam que o fim estava próximo, viram-no ali tão perto, e espalharam-se pelo chão dos navios, guiados pelo medo.
E eis que a manhã nasce radiosa, e eles acordam e mal conseguem acreditar. Ninguém devia existir! Um silêncio de incredulidade mantém-se em suspenso por um longo período, até ser interrompido por um ruído abafado, repetitivo e ritmado, que chega do lado de fora do navio. Alguma coisa bate compassadamente na grande nau, provocando um som oco que chega até ao convés onde os marinheiros permanecem expectantes. O capitão lança-se à procura da origem do estranho batuque, e é com um tremendo espanto que descobre um náufrago a boiar, junto ao casco da embarcação, no qual vai batendo grandes palmadas.
- HOMEM AO MAR! Depressa, venham acudir a este marinheiro que caiu ao mar! RÁPIDO, MEXAM-SE, que o desgraçado já quase não tem forças…
Os tripulantes são rápidos a reagir, e lançam-lhe uma rede bem esticada onde o náufrago se fixa para que o consigam içar.
Álvaro aprecia sentir o corpo a ser esfregado desta maneira ao longo do corpo negro da grande nau que ajudou a salvar, enquanto o vão alçando. A rede é a sua companhia, e a felicidade cresce nele e nos seus camaradas, que muito se alegram com esta salvação. O último puxão lança-o para o chão que ele logo beija, esfregando-lhe os braços e as pernas, arranhando-lhe as unhas dos mesmos dedos com que se segurou a Cecília, que até ali o carregou.
- VEJAM! É Álvaro, o marinheiro bailarino. É um verdadeiro milagre teres conseguido sobreviver no mar enquanto durou a tempestade. Os ventos e as ondas que te levaram foram benevolentes, talvez tenham apreciado as tuas danças tanto como nós. – exclama o comandante, com o sorriso estampado no rosto.
Os deuses e todos os anjos do céu estiveram do lado dos navegantes. Nenhum deste homens devia existir, e principalmente porque nenhum destes homens devia existir, é que todos sentem, neste momento, uma sensação de extrema felicidade. Agora que o bom tempo está de regresso, um turbilhão de emoções toma conta das almas dos navegantes, que se abraçam, cantando e festejando a boa nova.
Sobreviveram! Isso é o mais importante.
Quem sabe se o resto da viagem não terá ficado garantida.
Agora estão entretidos a escutar a brisa e o mar, pequenos, mas tão enormes.
O canto da gaivotas regressou. Os pássaros escutam, sentem e cheiram este lugar onde o tempo parou.
Os marinheiros mantêm-se abraçados para confirmar que tudo isto é real, e não um sonho. Conseguiram sobreviver às forças aterradoras do oceano e não faltará muito para alcançarem terra firme.
Porque a vida é breve, a alma é vasta, ter é tardar.
Este é um mar que une, já não separa. Num repente, do alto do mastro da grande nau, se vê surgir terra do azul profundo. Aqui, neste fim de mundo, os navegadores vieram encontrar as praias, as árvores, as flores, as aves, beijos merecidos da verdade.
Ao leme segue um povo que deseja este mar que não era seu, mas que, para glória sua, agora lhes pertence. Pasmaram os deuses e os gigantes da terra, pasmaram, pois quem quis passar para além do Bojador, teve de passar além da dor, teve de enfrentar os abismos que Deus ao mar ofereceu, pois também no mar o mesmo Deus o céu espelhou.
O comandante, visivelmente emocionado, prepara a tripulação para os muitos dias de trabalho que irão ser necessários para reparar os navios, e resolve contar uma história para lhes aquecer os corações:
- Esta é uma lenda recente, e na qual poucos acreditavam. Certo dia, uma armada de navios invisíveis e invencíveis, com o diabo ao leme, resolveu atacar uma frota de nobres marinheiros da mais fina linhagem e de coração puro. Uma parede de água e de espuma foi levantada à frente das naus, e era sustentada por ventos poderosos e indomáveis, capazes até de gelar o ânimo do mais valente dos heróis. Abrigados no meio da escuridão, os marinheiros encheram-se de coragem e aliaram-se ao escuro e às madrugadas. Alinharam-se com as noites que passaram a habitar a sua bravura. As naus deixaram de parecer tão pequenas, agigantaram-se, cresceram em tamanho e em audácia, um tamanho igual ao dos seus corações. O escuro era agora o seu abrigo, e dessa maneira se prepararam para lutar e tentar mudar o rumo do destino. Foram necessários todos os homens para combater aqueles demónios, que atacavam pelos flancos, pela retaguarda, de surpresa, e até por cima, de onde forças daquelas jamais tinham surgido. Mas sem que os demónios suspeitassem, e antes dos dias fulgirem, os homens rechaçaram os ataques, um após outro, afilados nas amuradas, sempre prontos para guerrear, sempre prontos para sofrer. O comandante da frota atacada, que sabia bem o que podiam os seus navios aguentar, virou-se para os marinheiros e deu-lhes uma ordem invulgar. Deviam virar as embarcações contra as dos demónios, e manter uma perseguição implacável às barcaças dos infernos. Todas as medidas de segurança foram tomadas em consideração, e a escuridão iria protegê-los, mas um dos barcos comandado pelos monstros arrebentou com a mezena da nau capitânia e fez com que o mar engolisse dois bravos marinheiros. A corrida não estava a dar os frutos esperados, a tripulação estava cansada e entristecida, e muitas eram as entranhas vomitadas. A loucura atacou o capitão, o capitão cedeu à estranha loucura que quase o cegou, mas a sua bravura evitou os maus pensamentos. Mais uma vez o comandante do navio iria testar os seus até aos limites, pois não estava habituado a derrotas, e deu ordens para manterem a perseguição, seguindo ainda mais para sul. Mandou ensaiar as bombardas e os canhões, que rugiram na escuridão, e mais uma vez os mandou falar, e uma terceira e uma outra ainda. Dispararam os canhões por cinco vezes e uma mar assombroso surgiu, por detrás das rochas, um mar montanha, extraordinário, que depois de se alevantar, logo se acalmou. Isto causou espanto em toda a tripulação. Os homens, confinados àquelas prisões de madeira flutuante durante meses, arrancados aos seus sonhos e às suas famílias, venceram o mar que nunca cede, venceram um mar onde navios fantasmas tinham aparecido para os derrotar e os levar até às profundezas dos infernos. Bons ventos regressaram, e ondas mais tranquilas, e uma chuva fresca que os alegrou. Os barcos regressaram à rota inicial e tudo o que não fazia falta, passou a fazer, e o sonho, que é a loucura, passou a fazer parte daquela alegria. E o sonho, que é a loucura, passou a fazer parte da nossa alegria!
E mais um dia se passou, Teu é o reino, o poder e a glória!


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