quinta-feira, 16 de abril de 2015

75 - MOMENTOS DE CRIAÇÃO



Álvaro experimenta novas dificuldades em respirar, está cansado e a visão torna-se obscura e muito nublosa. Cecília nada com a mesma elegância  de um anjo alado, ao sabor das correntes, enquanto transporta o corpo quente do marinheiro colado às costas. A temperatura da água vai baixando à medida que se afastam cada vez mais da cidade onde Tetis e Poseidon se defrontam, acompanhados por centenas de cardumes com peixes de várias espécies.
O conflito entre as duas divindades dá origem ao aparecimento de vários vulcões marinhos do fundo do leito dos oceanos. As espumas vaporosas e cinzentas que brotam das chaminés avançam rapidamente para a cidade e ameaçam tomá-la de assalto.
O mar depressa muda de cor.
Onde ainda agora existia a cidade, apenas se consegue vislumbrar uma gigantesca cordilheira de tons grisalhos, construída com lamas quentes e pastosas que a engrandecem.
As montanhas chegam à superfície, onde crescem e se multiplicam, brilhantes e cálidas, por cima de um mar impetuoso. Soltam vapores com cheiros pútridos muito intensos que chegam das entranhas do planeta, de lugares bem mais inóspitos que a mais profunda das fossas do grande lago oceano. O ar fresco e húmido mistura-se com estes gases e as massas quentes de lava fervem a céu aberto, gerando novas terras, criando ilhas e arquipélagos negros e vermelhos. Formam nuvens das mesmas cores que sobem até às camadas mais altas da atmosfera num cenário caótico de rara beleza.
Os olhos de Cecília brilham.
Nestes domínios não humanos, acentuam-se as diferenças entre as muitas espécies de animais marinhos, numa incrível turbilhão de vida.
Nestes domínios do fundo do grande lago, está guardada a maior e mais grandiosa exposição de estátuas, e ela não para de crescer.
- Não subas, Cecília, não subas ainda. – murmura Álvaro – Custa-me ter de me despedir destes lugares.
Passaram mais de dez horas desde que a manta belíssima o resgatou. Eles continuam a avançar, atravessando lugares cada vez mais perigosos e inabitáveis, evitando as correntes fortes e muito quentes, até que se perdem, momentaneamente, do caminho original. Cecília sobe, de imediato, para águas mais mornas e suportáveis, arriscando uma manobra ousada que quase desequilibra o navegante. Ele conseguiu agarrar-se, com extrema dificuldade.
- Temos de subir, mas não tenhas receio, Álvaro, em breve estarás a salvo deste caos.
O tripulante encosta-se ainda mais ao corpo da manta bailarina. Vira a cabeça de lado, para baixo, estende-se e estica bem corpo, com as pernas e braços abertos, e usa a força das mãos e dos dedos para melhor se conseguir segurar. A subida ainda será longa, mas Cecília é rápida a percorrer as águas do lago, tal como foi veloz a reagir e a retirar o navegante do meio daquele embate feroz.
- Quando Poseidon se enerva, só mesmo a rainha Anfitrite é capaz de o acalmar. As suas discussões são célebres, tornaram-se famosas pelo tempo que duram e pelos estragos que provocam. A cidade será transformada, mais uma vez, numa imensa cordilheira. Novas ilhas e arquipélagos nascerão, e a configuração dos continentes sofrerá grandes mudanças pois as suas costas serão rasgadas, dissolvidas, filtradas, erguidas e ajustadas, tudo será redesenhado ao pormenor durante essa longa, quente e nervosa altercação.

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