Onde há pássaros, existe terra.
Não podiam estar todos a alucinar, e gritaram juntos
TERRA À VISTA, em grande algazarra. Abraçados cantaram e festejaram alegremente
a boa nova. Sobreviveram, isso era o mais importante, e quem sabe se o resto da
viagem não terá ficado garantida. O rei dos mares resolveu poupá-los, mas nem
todos tiveram a mesma sorte.
O fundo do oceano é muito diferente do que Álvaro
tinha imaginado. Ele está feliz, sentado aos comandos da esfera rolante que vai
subindo uma falésia com desembaraço. Não se sente prisioneiro destas águas
profundas e muito menos uma estátua como as que aqui veio encontrar. Avança sem
ter a certeza de ter escolhido o caminho correto. O mais importante foi ter
tomado a opção de salvar os camaradas. Preferiu afastar-se de tudo o que
conhecia, confiou no seu instinto e mergulhou no grande lago despido de todos
os receios. A tempestade amainou e as embarcações e as vidas de todos os
marinheiros foram poupadas.
Álvaro respondeu afirmativamente àquele pedido,
seguiu, de bom grado, a voz do mar, e mergulhou. O rei dos mares impediu que
dona morte lhes oferecesse uma viagem sem regresso. Alguém mais poderoso do que
ela aliou-se aos navegadores e impediu a concretização da tragédia. Dona morte,
que nunca desiste, abalou para longe daquele lugar com o espírito carregado de
vingança. É bem capaz de visitar o marinheiro ao longo da sua viagem
subaquática.
Álvaro segue para cima, sobe cada vez mais alto até
onde a grande esfera consegue escalar, mas os trilhos tornam-se estreitos e
sinuosos. Às elevações de terreno sucedem-se abismos profundos de difícil
passagem e o planeta começa a perder estátuas ao longo do trajeto. São às
centenas as que se vão soltando da esfera tornando-a mais frágil e quebradiça.
O navegador insiste em manter a velocidade do veículo, a descer e a subir, até tocar
de novo no leito do lago onde estão abertas grandes fissuras através das quais
saem jatos de água a temperaturas altíssimas que se misturam com a água gelada.
Chaminés muito altas e imponentes irrompem na escuridão e geram densas nuvens
escuras perto das quais proliferam comunidades de crustáceos guerreiros. Na
escuridão nada se vislumbra e Álvaro não se apercebe do perigo que corre. Está
concentrado em manter a rota indicada pelos cefalópodes e em permanecer
afastado de armadilhas ou de ataques de gigantescos animais marinhos. O fundo
do mar esconde perigos inimagináveis e pode destruir, com facilidade, os sonhos
do navegador. Para isso bastaria que lhe fossem retiradas as faculdades que lhe
foram consagradas e que lhe permitem respirar debaixo de água e suportar a
tremenda pressão oceânica.
A irregularidade do terreno faz com que a esfera
trepide com violência. Álvaro é cuspido do alto de seu posto de comando para
uma zona onde a temperatura da água do lago é perigosamente alta. As estátuas
que se espalharam ao longo do último troço da viagem estão perfeitamente
alinhadas atrás da esfera que ganha uma coloração azulada. A bola ilumina-se de
azul, sempre que o perigo espreita, como sinal de aviso. Álvaro luta com as
correntes marítimas e a temperatura elevadíssima da água para tentar regressar
aos comandos do gigantesco veículo que agora se iluminou. Está admirado com as
centenas de estátuas que se encontram perfiladas ao longo dos trilhos
delineados pela grande esfera negra. As estátuas de pedra iluminam o fundo do
oceano com um brilho iridescente cor de coral. O ambiente assim iluminado
reflete-se no rosto esquálido da dama de negro que ali se encontrava escondida.
Álvaro não esperava voltar a vê-la tão cedo. Qual deles sentirá um maior
respeito pelo outro? Dona morte não receia nada neste mundo.
As estátuas do marinheiro observam-no enquanto ele
avança através do fundo deste oceano ameaçador povoado por micromundos
desconhecidos. Este caminho que lhe indicaram pode ter sido o errado. A esfera
está a perder cada vez mais estátuas e a ficar mais pequena. Álvaro volta a
despedir-se de dona morte. Este simples mortal ganhou o seu respeito e não
parece temê-la. Os dois trocam cumprimentos numa estranha valsa de olhares.
Nesse breve e singular instante, adivinham os pensamentos um do outro. A dama
de negro não era suposto estar a passear por aqui, e o marinheiro devia ter
falecido ao ter realizado a tarefa a que se propôs.
As estátuas de Álvaro que aqui repousam estão
orgulhosas por terem feito parte da grande escultura ambulante que lhe tem
permitido realizar a viagem. Para celebrar o feito ímpar, muitos são os lugares
por onde a esfera passou que agora se encontram embelezados com estátuas do
viajante, e peixes de vários tamanhos, espécies e cores nadam à sua volta.
O marinheiro conseguiu regressar ao posto de comando
da imensa esfera que agora ameaça transformar-se em ruína. Alguém achou por bem
começar a destroçar a nave redonda do comandante Álvaro que manteve a esperança
de um futuro para todos os seus companheiros, um futuro que ameaçava tornar-se
tão inexistente quanto o seu. Essa batalha continuará a ser travada nas sombras
e profundezas deste mar oceano, e ele terá de ser melhor instruído para
conseguir sobreviver aos perigos ocultos na escuridão.
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