quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

22 - POR ENTRE AS SOMBRAS, O FRIO E A ESCURIDÃO


Onde há pássaros, existe terra.
Não podiam estar todos a alucinar, e gritaram juntos TERRA À VISTA, em grande algazarra. Abraçados cantaram e festejaram alegremente a boa nova. Sobreviveram, isso era o mais importante, e quem sabe se o resto da viagem não terá ficado garantida. O rei dos mares resolveu poupá-los, mas nem todos tiveram a mesma sorte.
O fundo do oceano é muito diferente do que Álvaro tinha imaginado. Ele está feliz, sentado aos comandos da esfera rolante que vai subindo uma falésia com desembaraço. Não se sente prisioneiro destas águas profundas e muito menos uma estátua como as que aqui veio encontrar. Avança sem ter a certeza de ter escolhido o caminho correto. O mais importante foi ter tomado a opção de salvar os camaradas. Preferiu afastar-se de tudo o que conhecia, confiou no seu instinto e mergulhou no grande lago despido de todos os receios. A tempestade amainou e as embarcações e as vidas de todos os marinheiros foram poupadas.
Álvaro respondeu afirmativamente àquele pedido, seguiu, de bom grado, a voz do mar, e mergulhou. O rei dos mares impediu que dona morte lhes oferecesse uma viagem sem regresso. Alguém mais poderoso do que ela aliou-se aos navegadores e impediu a concretização da tragédia. Dona morte, que nunca desiste, abalou para longe daquele lugar com o espírito carregado de vingança. É bem capaz de visitar o marinheiro ao longo da sua viagem subaquática.
Álvaro segue para cima, sobe cada vez mais alto até onde a grande esfera consegue escalar, mas os trilhos tornam-se estreitos e sinuosos. Às elevações de terreno sucedem-se abismos profundos de difícil passagem e o planeta começa a perder estátuas ao longo do trajeto. São às centenas as que se vão soltando da esfera tornando-a mais frágil e quebradiça. O navegador insiste em manter a velocidade do veículo, a descer e a subir, até tocar de novo no leito do lago onde estão abertas grandes fissuras através das quais saem jatos de água a temperaturas altíssimas que se misturam com a água gelada. Chaminés muito altas e imponentes irrompem na escuridão e geram densas nuvens escuras perto das quais proliferam comunidades de crustáceos guerreiros. Na escuridão nada se vislumbra e Álvaro não se apercebe do perigo que corre. Está concentrado em manter a rota indicada pelos cefalópodes e em permanecer afastado de armadilhas ou de ataques de gigantescos animais marinhos. O fundo do mar esconde perigos inimagináveis e pode destruir, com facilidade, os sonhos do navegador. Para isso bastaria que lhe fossem retiradas as faculdades que lhe foram consagradas e que lhe permitem respirar debaixo de água e suportar a tremenda pressão oceânica.
A irregularidade do terreno faz com que a esfera trepide com violência. Álvaro é cuspido do alto de seu posto de comando para uma zona onde a temperatura da água do lago é perigosamente alta. As estátuas que se espalharam ao longo do último troço da viagem estão perfeitamente alinhadas atrás da esfera que ganha uma coloração azulada. A bola ilumina-se de azul, sempre que o perigo espreita, como sinal de aviso. Álvaro luta com as correntes marítimas e a temperatura elevadíssima da água para tentar regressar aos comandos do gigantesco veículo que agora se iluminou. Está admirado com as centenas de estátuas que se encontram perfiladas ao longo dos trilhos delineados pela grande esfera negra. As estátuas de pedra iluminam o fundo do oceano com um brilho iridescente cor de coral. O ambiente assim iluminado reflete-se no rosto esquálido da dama de negro que ali se encontrava escondida. Álvaro não esperava voltar a vê-la tão cedo. Qual deles sentirá um maior respeito pelo outro? Dona morte não receia nada neste mundo.
As estátuas do marinheiro observam-no enquanto ele avança através do fundo deste oceano ameaçador povoado por micromundos desconhecidos. Este caminho que lhe indicaram pode ter sido o errado. A esfera está a perder cada vez mais estátuas e a ficar mais pequena. Álvaro volta a despedir-se de dona morte. Este simples mortal ganhou o seu respeito e não parece temê-la. Os dois trocam cumprimentos numa estranha valsa de olhares. Nesse breve e singular instante, adivinham os pensamentos um do outro. A dama de negro não era suposto estar a passear por aqui, e o marinheiro devia ter falecido ao ter realizado a tarefa a que se propôs.
As estátuas de Álvaro que aqui repousam estão orgulhosas por terem feito parte da grande escultura ambulante que lhe tem permitido realizar a viagem. Para celebrar o feito ímpar, muitos são os lugares por onde a esfera passou que agora se encontram embelezados com estátuas do viajante, e peixes de vários tamanhos, espécies e cores nadam à sua volta.
O marinheiro conseguiu regressar ao posto de comando da imensa esfera que agora ameaça transformar-se em ruína. Alguém achou por bem começar a destroçar a nave redonda do comandante Álvaro que manteve a esperança de um futuro para todos os seus companheiros, um futuro que ameaçava tornar-se tão inexistente quanto o seu. Essa batalha continuará a ser travada nas sombras e profundezas deste mar oceano, e ele terá de ser melhor instruído para conseguir sobreviver aos perigos ocultos na escuridão.

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