sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

26 - O MEU NOME É AQUELE QUE DESEJARES



Ao aproximar-se da estátua da rapariga, ele apercebe-se que a escultura é muito parecida com a sua irmã quando jovem. Hesita, antes de lhe pegar, e depois retira-a do meio do caminho. A jovem é mais leve do que imaginara e é com facilidade que a transporta para um outro lugar. Coloca-a com muito cuidado, de pé, ao lado da imensa esfera negra que se mantém imóvel no mesmo sítio onde parou. As palavras custam-lhe a sair. Admirado com tantas semelhanças, esquece-se das perguntas que tinha para lhe fazer. Observa-a com olhos surpresos. O mármore rosado em que foi esculpida é tão liso e brilhante que ninguém diria ter sido abandonada há muito tempo. Pelas palavras da rapariga, Álvaro depreendeu que ela já estaria cansada de tanta solidão pois ninguém antes dele a visitara. Esta é uma estátua diferente das demais, o mar poupou-a, manteve-a incólume, ao contrário de outras que acabaram cobertas por corais. O marinheiro ficou mudo, mas a jovem é rápida a agradecer:
- Obrigada! Muito obrigada pela tua atenção. Foste gentil comigo. Sabes que o meu destino era passar a fazer parte dessa grande esfera onde viajas. Desculpa, mas isso era algo que eu não queria. Prefiro assim. Se vieste em meu auxílio, talvez me possas levar para bem longe daqui. Não ficaste indiferente ao meu apelo, e foste rápido a agir em meu auxílio. Agradeço-te a tua amabilidade.
Os marinheiros sabem melhor do que ninguém qual é o verdadeiro peso da solidão, e de como ela se transforma naquela coisa insuportável que se entranha nos corpos e na alma. São como estas estátuas que habitam no fundo do lago, afastadas umas das outras por ordens expressas da dona morte. Foram abandonadas em isolamento, e permanecem escondidas no mais profundo dos silêncios, numa escuridão quase total, depositadas em águas tão profundas e geladas que nem o tempo por lá se atreve a passear. Álvaro prepara-se para resgatar esta estátua da sua condição. Sente-o, isto é algo que irá aumentar a ira de dona morte mas ele sabe que tem de o fazer.
- Como te chamas? – pergunta o marinheiro sorridente.
- O meu nome é aquele que desejares. Esqueci-me de quem era quando aqui acordei. Podes batizar-me pois até o meu nome eu esqueci. Pensei que pudesses avançar e eu seria apenas mais uma estátua dessa grande esfera onde viajas. Por instantes pensei que assim iria acontecer, até que a bola parou, até que tudo o resto se passou, e agora estamos aqui.
Álvaro sorri, abraça a estátua, levanta-a e coloca-a sobre o ombro direito. Agarra-se à primeira figura da imensa esfera negra e começa a subida de regresso ao topo do veículo, com  grande destreza.
- Vou levar-te comigo. Tenho perguntas para te fazer, mas não te vou cansar pois se nem o teu nome recordas. Vou levar-te comigo até à cidade que procuro. Desta maneira não nos deixaremos abater pela solidão, e tu bem sabes como ela nos faz ranger os ossos e os dentes e o medo, que também tem ossos e dentes e range o mesmo que os corpos sentem.
A rapariga abraça Álvaro, ainda ao seu ombro, e sorri. A jovem ganhou vida da cintura para cima e abraça o marinheiro uma outra vez quando alcançam o topo do planeta feito de estátuas.
- Obrigada! Tens razão, eu não me recordo de quem sou, nem o nome pelo qual era conhecida, mas sei o caminho que deves tomar para alcançar essa cidade que procuras.
A esfera trepida, com um solavanco, e retoma a sua marcha. Esta zona mais iluminada e menos acidentada do lago é percorrida sem dificuldade. São muitas as espécies de peixes que nadam nestas águas e que os acompanham ao longo do trajeto. Porque razão estará o fundo do mar povoado por tantas e tantas estátuas? Esta é uma das muitas perguntas que Álvaro tem para lhe fazer, mas prefere guardá-la para mais tarde. Agora é o tempo para admirar a paisagem e desfrutar o passeio.
- Não te preocupes, marinheiro, estamos a avançar pelo sítio certo. Existe uma vantagem ao viajares nesta esfera construída com estátuas. Cada uma delas conhece, como ninguém, o fundo do oceano. Apesar de permanecermos isoladas e estáticas nos lugares que nos foram destinados, as nossas mentes permanecem num constante estado de alerta. Somos capazes de sentir, escutar e até de formar opiniões acerca de muitos assuntos. Como vês, apesar de serem raros, há momentos em que até podemos regressar à nossa condição humana, e isso pode fazer toda a diferença.

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