Álvaro começou a apresentar indícios de algum
desregramento naquele outubro distante, logo após ter encetado a prática dos seus
longos passeios. Foi desde então que passou a ocupar os dias a olhar as nuvens
que decoravam os céus outonais. Adelaide suspeitou do juízo do irmão quando ele
lhe comunicou que a casa não parava de ranger e ele não conseguia adormecer com
tanto barulho.
O irmão não dormia, ou quase não dormia.
Durante o dia, olhava para cima, e pela madrugada
entretinha-se a vaguear descalço pela casa, de um lado para o outro, de olhos
fixos no chão ou nos seus pés enormes de dedos grandes e esguios. Pressionava o
soalho da casa fazendo-o ceder, e a madeira guinchava uma lamúria aguda muito
irritante.
Certa madrugada, dias antes de regressar a mais uma
de suas longas caminhadas, decidiu dançar pela sala. Levantava e baixava os
braços, bailando em círculos, para trás e para diante. Balouçava o corpo
rodando a anca para a direita e para a esquerda. Depois, com os braços
arqueados e as mãos coladas à cintura, ensaiava um novo vira desgovernado. Pulava,
saltava e rodopiava, de corpo curvado, ensaiando piruetas, umas mais conseguidas
do que outras, até regressar ao seu estado inicial.
Parou.
Lentamente voltou a andar, exercendo uma força
tremenda com os pés a cada novo passo seu.
- A madeira não cede? – questionava Álvaro sempre a
caminhar. – A madeira é velha mas não cede. É rija, é forte, e aguenta a força
do meu corpo e as maldades que nela vou ensaiando. Viverá muitos anos para além
de nós, é tão resistente que doença alguma a arrasará. É madeira seca e velha
da casa dos Vasconcelos. E nós? O que resta de nós? Agora sou apenas eu e a minha
irmã. Temos de saber aproveitar cada um dos instantes que nos restam.
Adelaide ouvira ruídos e acordara. O irmão falava
sozinho, dançava sozinho, saltava e atirava com o corpo contra as paredes e o
soalho do salão. Aquilo não era bonito de se ver. O irmão perdera a cabeça, não
podia estar na posse das suas faculdades mentais. Álvaro tinha começado a
perturbar as noites que foram feitas para repousar.
- O que estás tu a fazer, meu irmão? Endoideceste?
Para de dançar e vai-te deitar. Volta para o teu quarto que ainda falta
bastante para o dia acordar.
O irmão parara mas os seus pés descalços ainda pressionavam
o soalho exercendo nele uma força formidável com os calcanhares.
- E se o chão rebentasse? E se tudo isto em que
tocamos, tudo o que vemos e aquilo em que acreditamos não existisse de verdade?
Se as nossas vidas fossem uma mentira e se fossemos apenas sombras ou miragens?
Talvez tudo fosse bem mais fácil de suportar.
Adelaide olhava para o irmão com olhos de mel. A
loucura transformara-o num homem incerto e inconstante com as ideias alteradas
pela doença. Nada do que dizia ou praticava fazia sentido. Álvaro era outro e
tudo acontecera com incompreensível rapidez. As viagens deixaram-no naquele
estado, as viagens e os passeios que ele entendera começar a praticar com
inusitada regularidade. O irmão que sempre conheceu já não era aquele homem que
saltara no salão à sua frente.
- E se o chão rebentasse, Adelaide? Se fossemos
capaz de destruir todo o mal que existe apenas com a força das nossas pernas e
braços? Deixaste de ter esperança no regresso dos nossos irmãos, tal como eu. O
mar é mesmo assim, é cruel, venenoso, mágico e misterioso, e consegue sempre
enfeitiçar-nos. Que culpa tivemos nós em termos nascido marinheiros? Que culpa
tivemos nós? Mas descansa, vais ver que isto que connosco se está a passar
tornar-se-á bem mais fácil de suportar. Quando eu regressar ao mar vou seguir o
conselho que as árvores e as nuvens me deram, lá no alto, no topo da serrania,
ao anoitecer.
Adelaide quis interrompê-lo, mas optou em deixá-lo
continuar.
- Elas disseram-me para deixar de ter receio do mar
pois ele necessitará dos meus préstimos num futuro muito próximo. Quando o mar
me chamar, deverei obedecer-lhe. Foi isto que me informaram e eu fiquei feliz
por as ter conseguido escutar.
Álvaro sorriu.
Os olhos húmidos de Adelaide tentaram guardar as
lágrimas que acabaram por lhe refrescar o rosto desalentado.
- Filho da mãe desse mar carrasco que nos deu cabo
da vida e da família. Levou-nos todos os homens desta casa e agora também ameaça
fazer-te desaparecer. E mesmo que não o faça já te roubou a razão que te
permitia discernir as coisas fúteis desta vida.
A grande esfera negra protege o marinheiro dos
peixes ferozes que ali chegaram atraídos pelo seu sangue. O interior da bola é
escuro e húmido mas a água não penetra nesta espécie de cápsula onde Álvaro se
abrigou. Ele pode voltar a respirar da mesma maneira como sempre respirou,
apesar do ar ser aqui menos oxigenado do que aquele que se respira à
superfície.
As dores lancinantes mantiveram-no alheio ao
estranho acontecimento de salvação, são as monarcas supremas dos seus
pensamentos e fazem-no desfalecer.
A esfera conserva o rumo, avança a grande velocidade
pelo fundo do lago guardando um Álvaro desfalecido no seu interior. Algumas
estrelas do mar com poderes curativos começam a tomar conta da anca, da coxa e
da perna do marinheiro. O sangue ainda não foi totalmente estancado pois as
feridas são profundas e demorarão algum tempo a sarar. Se a vida de Álvaro
fosse uma mentira e ele apenas uma sombra ou uma miragem, os peixes não o
teriam atacado e a esfera não se teria aberto para o proteger. O planeta
majestoso nem sequer existiria pois um globo assim não se entalha com estátuas
feitas de pessoas-sombra.
Álvaro existe, não é sombra nem miragem nem mentira,
e dele dependem os camaradas que à superfície vão lutando contra as forças
obscuras das tempestades oceânicas que fustigam as embarcações.
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