sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

29 - COISAS FÚTEIS DESTA VIDA


Álvaro começou a apresentar indícios de algum desregramento naquele outubro distante, logo após ter encetado a prática dos seus longos passeios. Foi desde então que passou a ocupar os dias a olhar as nuvens que decoravam os céus outonais. Adelaide suspeitou do juízo do irmão quando ele lhe comunicou que a casa não parava de ranger e ele não conseguia adormecer com tanto barulho.
O irmão não dormia, ou quase não dormia.
Durante o dia, olhava para cima, e pela madrugada entretinha-se a vaguear descalço pela casa, de um lado para o outro, de olhos fixos no chão ou nos seus pés enormes de dedos grandes e esguios. Pressionava o soalho da casa fazendo-o ceder, e a madeira guinchava uma lamúria aguda muito irritante.
Certa madrugada, dias antes de regressar a mais uma de suas longas caminhadas, decidiu dançar pela sala. Levantava e baixava os braços, bailando em círculos, para trás e para diante. Balouçava o corpo rodando a anca para a direita e para a esquerda. Depois, com os braços arqueados e as mãos coladas à cintura, ensaiava um novo vira desgovernado. Pulava, saltava e rodopiava, de corpo curvado, ensaiando piruetas, umas mais conseguidas do que outras, até regressar ao seu estado inicial.
Parou.
Lentamente voltou a andar, exercendo uma força tremenda com os pés a cada novo passo seu.
- A madeira não cede? – questionava Álvaro sempre a caminhar. – A madeira é velha mas não cede. É rija, é forte, e aguenta a força do meu corpo e as maldades que nela vou ensaiando. Viverá muitos anos para além de nós, é tão resistente que doença alguma a arrasará. É madeira seca e velha da casa dos Vasconcelos. E nós? O que resta de nós? Agora sou apenas eu e a minha irmã. Temos de saber aproveitar cada um dos instantes que nos restam.
Adelaide ouvira ruídos e acordara. O irmão falava sozinho, dançava sozinho, saltava e atirava com o corpo contra as paredes e o soalho do salão. Aquilo não era bonito de se ver. O irmão perdera a cabeça, não podia estar na posse das suas faculdades mentais. Álvaro tinha começado a perturbar as noites que foram feitas para repousar.
- O que estás tu a fazer, meu irmão? Endoideceste? Para de dançar e vai-te deitar. Volta para o teu quarto que ainda falta bastante para o dia acordar.
O irmão parara mas os seus pés descalços ainda pressionavam o soalho exercendo nele uma força formidável com os calcanhares.
- E se o chão rebentasse? E se tudo isto em que tocamos, tudo o que vemos e aquilo em que acreditamos não existisse de verdade? Se as nossas vidas fossem uma mentira e se fossemos apenas sombras ou miragens? Talvez tudo fosse bem mais fácil de suportar.
Adelaide olhava para o irmão com olhos de mel. A loucura transformara-o num homem incerto e inconstante com as ideias alteradas pela doença. Nada do que dizia ou praticava fazia sentido. Álvaro era outro e tudo acontecera com incompreensível rapidez. As viagens deixaram-no naquele estado, as viagens e os passeios que ele entendera começar a praticar com inusitada regularidade. O irmão que sempre conheceu já não era aquele homem que saltara no salão à sua frente.
- E se o chão rebentasse, Adelaide? Se fossemos capaz de destruir todo o mal que existe apenas com a força das nossas pernas e braços? Deixaste de ter esperança no regresso dos nossos irmãos, tal como eu. O mar é mesmo assim, é cruel, venenoso, mágico e misterioso, e consegue sempre enfeitiçar-nos. Que culpa tivemos nós em termos nascido marinheiros? Que culpa tivemos nós? Mas descansa, vais ver que isto que connosco se está a passar tornar-se-á bem mais fácil de suportar. Quando eu regressar ao mar vou seguir o conselho que as árvores e as nuvens me deram, lá no alto, no topo da serrania, ao anoitecer.
Adelaide quis interrompê-lo, mas optou em deixá-lo continuar.
- Elas disseram-me para deixar de ter receio do mar pois ele necessitará dos meus préstimos num futuro muito próximo. Quando o mar me chamar, deverei obedecer-lhe. Foi isto que me informaram e eu fiquei feliz por as ter conseguido escutar.
Álvaro sorriu.
Os olhos húmidos de Adelaide tentaram guardar as lágrimas que acabaram por lhe refrescar o rosto desalentado.
- Filho da mãe desse mar carrasco que nos deu cabo da vida e da família. Levou-nos todos os homens desta casa e agora também ameaça fazer-te desaparecer. E mesmo que não o faça já te roubou a razão que te permitia discernir as coisas fúteis desta vida.
 
A grande esfera negra protege o marinheiro dos peixes ferozes que ali chegaram atraídos pelo seu sangue. O interior da bola é escuro e húmido mas a água não penetra nesta espécie de cápsula onde Álvaro se abrigou. Ele pode voltar a respirar da mesma maneira como sempre respirou, apesar do ar ser aqui menos oxigenado do que aquele que se respira à superfície.
As dores lancinantes mantiveram-no alheio ao estranho acontecimento de salvação, são as monarcas supremas dos seus pensamentos e fazem-no desfalecer.
A esfera conserva o rumo, avança a grande velocidade pelo fundo do lago guardando um Álvaro desfalecido no seu interior. Algumas estrelas do mar com poderes curativos começam a tomar conta da anca, da coxa e da perna do marinheiro. O sangue ainda não foi totalmente estancado pois as feridas são profundas e demorarão algum tempo a sarar. Se a vida de Álvaro fosse uma mentira e ele apenas uma sombra ou uma miragem, os peixes não o teriam atacado e a esfera não se teria aberto para o proteger. O planeta majestoso nem sequer existiria pois um globo assim não se entalha com estátuas feitas de pessoas-sombra.
Álvaro existe, não é sombra nem miragem nem mentira, e dele dependem os camaradas que à superfície vão lutando contra as forças obscuras das tempestades oceânicas que fustigam as embarcações.

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