sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

30 - TRANSFORMAÇÃO


O ambiente tem tanto de sonho como realidade, tem tanto de angústia quanto de esperança.
O marinheiro descansa e a esfera continua a acelerar atravessando, aos ziguezagues, o fundo do mar oceano. Consegue-se notar o exterior através de uma pequena abertura, mas Álvaro está adormecido e não vê a beleza destas terras. Não terá saudades delas nem dos seus mistérios.
Adelaide andava triste como se só lhe surgissem dezembros na alma. Não sabia porque montes e em que vales andara o irmão e porque se sentia feliz a perder-se por lá. A felicidade, seja ela qual for, só podia acontecer longe daquela casa, e ela não sabia o dia em que a sua viria a suceder. Isso já nem lhe importava pois se daquela grande família apenas restam os dois. Adelaide não tem sonho nenhum, apenas um passado que preferia conseguir esquecer. Decidiu não o fazer.
Em breve o dia nasceria e o irmão poderia voltar a adormecer. Adelaide olhava para ele com atenção, parecia-lhe estar mais calmo, a agitação tinha passado, o que era bom.
A esfera esculpe mais abismos no fundo do mar aumentando a distância percorrida. Um ar morno aquece o interior da grande cápsula e o marinheiro volta a sentir o corpo que antes se desligara. As estrelas do mar continuam a tratar-lhe das feridas.
Álvaro mal consegue raciocinar, não sabe o que pensar, não sabe se existe ou existiu. Perto da velha casa que o viu nascer corria um riacho e por um qualquer estranho desígnio, é desse ribeiro manso que se recorda ao olhar as suas mãos que nem sabe se são verdadeiras. Esta vida é um mistério. Quando ele era menino adorava correr junto às margens desse riacho a fazer de conta que ali vivia um mar imenso com rochedos intransponíveis e marés que tocavam continentes distantes onde existiam cidades com templos e palácios da cor do sol. Assim recorda a sua alma.
Talvez estas memórias não sejam verdadeiras e ele mal sabe o que pensar. Só agora recuperou os sentidos totalmente e começou a aplacar as dores. Agora sente, agora vê através da pequena abertura da grande esfera os bonitos lugares e paisagens do exterior. Deve estar a viver dentro daquele riacho da sua infância, deve ser isso que aqui se está a passar.
A velocidade abranda e ele sente-se embalado. Deseja poder voltar a caminhar e só não o faz porque a perna continua muito mal tratada. Na sua primeira grande caminhada teve pânico dos montes e foi por isso que os enfrentou. Estavam para ali parados, como gigantes, a guardar segredos feitos de pedra.
Álvaro debruça-se um pouco para melhor observar a paisagem, para melhor ver estes novos montes que a esfera se entretém a esculpir. Ele passou a amar os montes e era feliz sozinho naquelas caminhadas. Escutava o canto dos pássaros, perdia-se nas florestas e embrenhava-se nos seus pensamentos. Aqui passeia por entre outros rochedos e espreita o mar. A perna nua recebeu de presente estes animais estrelados que o aquecem e remendam devagar. A vida aquecia-o quando era pequeno e corria com a irmã junto às margens do riacho.
- E tu, minha irmã, porque não danças? Esquece o mar feroz e vem dançar e saltar, como eu. Vem bater com os pés nesta madeira que range, neste soalho velho que antes foi criatura.
Um horror iluminou o rosto de Adelaide que sentiu um medo maior do que ela. Começou como um formigueiro, nas mãos, e subiu pelos braços como uma floresta escura de pinheiros rígidos de pinhas afiadas e cortantes. Sentiu um pavor a invadi-la, um mistério, e outras florestas escuras de pinheiros rígidos de pinhas afiadas e cortantes subiram-lhe pelas costas, invadiram-lhe o corpo inteiro e ela deixou de ter consciência dela própria, deixou de saber quem tinha sido até se tornar apenas um choro. Era tão tarde, era tarde demais para Adelaide cantar e para dançar.
Álvaro costumava sentar-se à beira do ribeiro num grosso tronco velho que ali se encontrava caído. Entretinha-se a molhar os pés, ali ficava a bater com eles na água, esticava os dedos o mais que conseguia, até que a irmã o vinha chamar. À beira do riacho sonhava, queria ser a água daquele mar, mas não podia ser porque naquele mar as ondas não possuíam espuma nem chiavam, como faziam as verdadeiras ondas do mar. Adelaide chegava, ele sorria e guardava segredo de mais aquele dia.
Quem sabe porque lhe veio à memória a imagem desse ribeiro? A perna deixou de latejar e reaprendeu a guardar o sangue que já não sai. A vida ainda o quer. O marinheiro lembrou-se do riacho porque não conseguia lembrar-se de mais nada, e depois lembrou-se da irmã, e ao lembrar-se de tudo isto sabe quem foi, o que viveu e o que recordou.
- Está escuro lá fora. Quando as ondas se formam e se espalham, a espuma parece que chia. Quando os abismos, escarpas e veredas são esculpidos, o mar fabrica as correntes e as ondas ficam belas ao espumar. É pena o mar esconder tantos perigos, mas é tão belo porque, sem dúvida, assim tem de existir.
Álvaro esqueceu que teve mãe e teve pai. Quando reparou em si, eles já não existiam, foi como se tivesse sido criado por um sonho. O pai, marinheiro como todos os irmãos, nunca mais tornou a ver uma outra vela desde que partiu para não mais regressar. Não sabe quando teve início a sua viagem, e quando o filho reparou na lua que iluminava no porto as velas dos navios que chegavam, nenhuma lhe trouxe o pai de volta, um pai que podia ser, que desejou conhecer e que, com pena, no mar ficou.
- Talvez o pai seja uma destas estátuas! Todos os homens que o mar convocou acabam por vir ter ao fundo deste lago para nele repousar. Só eu, naufrago, me salvei, para que os meus companheiros possam sobreviver e voltar à pátria e às suas gentes.
A esfera rola pelas orlas do chão arenoso entretendo-se a desenhar-lhe sombras por entre as dunas. Os tubarões desapareceram e o coração do marinheiro volta a palpitar, dói-lhe por ter sido tão rápido o tempo a passar desde esses dias em que brincava e se entretinha a molhar os pés à beira do riacho. Passaram anos em que todos os dias ia até ao tronco caído, e sabia de cor as formas dos seixos e os murmúrios que a água fazia ao embalá-los.
- Adelaide, porque não danças? É melhor dançar do que falar. Não devemos falar demasiado, eu nem gosto de ouvir-me falar. Vem dançar antes que o dia nasça, não pares de dançar. Encolhe as pernas e depois estica-as, alonga os dedos dos pés e das mãos, aprende a fazer estalar os ossos e faz força com os calcanhares. Pressiona com toda a força a madeira velha deste chão, faz com que ele ranja como rangem os dentes e os ossos e o medo, que também tem ossos e dentes e range o mesmo que os corpos sentem.
Se Adelaide soubesse escrever, teria escrito que o medo é um corpo invisível que toma conta de tudo nestes momentos.
A estátua da jovem rapariga estremece e todo o seu corpo, de repente, se transforma em carne e se reconstrói tal como era antes de aqui chegar. Do lado de fora da grande esfera, ela passou de pedra a pessoa e respira como o marinheiro. Ela é doce e dona de bonita figura, e sabe que terá de ser rápida a encontrar uma entrada para o interior da grande esfera onde terá de se abrigar. Está à mercê dos perigosos animais marinhos que vivem nestas paragens, e a sua vida pode estar em risco.
- Tenho de fazer como o marinheiro e encontrar uma entrada. O que terá ele descoberto no interior desta bela bola negra? Novas paisagens, cidades com bairros de ruas largas? Sinto-me tão estranha ao ser de novo de carne e osso, ao possuir uma vida que pode falar de sonhos e pertencer a muitos lugares sem se sentir presa ou cativa. Tudo isto importará bem pouco se um monstro esfomeado resolver atacar-me. Deixarei de recordar, o sangue misturar-se-á com a água até deixar de existir. Preciso entrar neste mundo para me proteger, mas como se não vejo nenhuma porta por onde possa penetrar? Tenho de continuar a procurar.
Álvaro está atento a olhar pela pequena janela envidraçada e repara que existe movimento do lado de fora. Um vulto nada junto à claraboia. Não é o seu atacante, nem são sargaços esquecidos ou grandes cefalópodes a indicar o caminho. Como num sonho, o corpo de uma rapariga dança um bailado subaquático mesmo em frente ao local por onde o marinheiro vai espreitando.
 

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