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Sinto-me
estranho. É como se uma parte de mim não tivesse adormecido e ficasse a ver.
Quem será esta que ali fora dança? Já me lembro, pois claro, esta é a jovem que
eu resgatei. Deve ter adquirido a forma humana para me contar a sua história.
Ainda estou ensonado e custa-me raciocinar, mas só pode ser ela. Preciso
ajudá-la a entrar para que não passe pelo mesmo horror que eu passei quando o
animal quase me arrancou a perna. Ah, … a esfera está a encher-se de água, … é
agora. Três estátuas afastam-se e a rapariga vai poder entrar. Mas porque não
entra? Não, não acredito… ela não viu as estátuas que se afastaram para a
deixar entrar.
Álvaro olha pelo vidro do globo e o silêncio começa,
de novo, a tomar conta do interior da esfera imensa.
- Entre nós aumentaram os abismos, bela rapariga. Eu
devia ter ido aí fora para te buscar, mas não o consegui. Por alguma razão
olhaste para o lado e não viste a entrada que se abriu. O mar gosta de te ver
dançar e quer-te só para ele, não te parece? Talvez deseje que as ondas
aprendam a dançar como tu… mas que digo eu? Repito disparates como se seguisse
a voz do meu pensamento, uma voz que na realidade mal consigo escutar, mas que
me segreda. São as ondas da minha alma, são elas que me embalam… e eu que só
queria conseguir andar.
Do lado de fora da bola negra a jovem tenta a sua
sorte, sem sucesso. A entrada de há pouco estava numa zona de sombras e ela não
a conseguiu detetar. O marinheiro tem a garganta e a boca cada vez mais secas.
Quanto tempo passará até que uma nova abertura possa acontecer? Existem mais
zonas de sombras do que iluminadas neste lugar do fundo do lago. A rapariga
mantém-se nos lugares onde a luz chega, vai nadando para se manter quente, ela
que se esquecera como era sentir um corpo morno e a pele sedosa. Nada feliz mas
receosa. Em breve conseguirá alcançar o interior do veículo pois será muito
triste se não se conseguir salvar. Foi o mar quem a depositou no fundo deste
lago, no cimo de um pequeno rochedo, nesse dia longínquo em que foi
transformada em estátua. Passou a sonhar com um marinheiro que a pudesse
libertar, um que naufragasse para a salvar, um que conhecesse outra espécie de países
e outras espécies de paisagens, e a cada hora que passava ela construía assim
um sonho que nunca deixava de sonhar. Teve saudades das estrelas, das árvores,
e adormecia só para as recordar, e o coração ainda mais lhe doía. Passou
milhões de horas a recordar, e a água que por ela passava murmurava, baixinho,
e sentia-se feliz por conseguir imaginar os mesmos horizontes, estrelas e
árvores da jovem estátua sonhadora. Ela era verdadeira quando recordava e foi
assim que, de repente, surgiu no fundo do mar a grande esfera com o marinheiro
às costas. Tinha feito uma longa viagem só para a salvar.
- Às vezes ficamos tristes quando sonhamos… quando
não podemos ser aquilo que sonhamos ou quando a espuma das ondas os desfaz. Eu
já vi este meu sonho, e vejo uma janela pequena e redonda e espreito, e vejo-te
aí dentro, marinheiro. Tu estás bem, estás vivo e olhas para mim.
Álvaro vê a jovem e já não se sente perdido. No
fundo do lago não existem palmeiras, e as aves não passam por aqui. Desde que
mergulhou deixou de ser capaz de olhar para as estrelas, até agora. A bela
jovem sorri e ele grita-lhe sem saber se ela o consegue escutar.
- DEIXA-TE ESTAR! Não saias daí! Em breve a bola
reabrir-se-á e tu vais entrar neste abrigo morno. Verás que é isso que vai
acontecer, é isso que desejo ver acontecer. Será que é preciso que eu o diga
para que esta esfera se volte a abrir? Será que é isso que eu tenho de fazer?
O marinheiro respira fundo e olha uma vez mais para
a jovem antes de ensaiar o pedido. Seria tão fácil se isto fosse possível. E se
for mesmo possível abrir a grande bola com a força da sua voz?
- ABRE-TE GRANDE ESFERA NEGRA!, Deixa entrar a
rapariga que dança lá fora e que corre risco de vida. ABRE-TE, AGORA, deixa-a
entrar!
O globo estremece, abranda a marcha e imobiliza-se.
Um novo estremecimento e três estátuas afastam-se do corpo do mundo negro junto
à pequena claraboia por onde Álvaro vai espreitando. A água inunda o interior
da viatura trazendo a rapariga na enxurrada. Um terceiro estremecimento e a porta
volta a fechar-se. A água sai devagar, quase sem ruído, é uma melodia que lhes acalenta
o espírito. Os dois são agora ouvintes e habitantes deste mundo negro que aprenderam
a respeitar e que, de novo, rola a grande velocidade.
- Que diria?! Afinal, bastou um simples pedido e a esfera
abriu-se para te deixar entrar. – exclama Álvaro com alegria.
- Talvez só tu conseguisses fazê-lo. Eu fartei-me de
lhe pedir e ela não se abriu. Era necessário o timbre da tua voz. Explica a jovem
sorridente.
- Ora essa, nada é absolutamente necessário. O que importa
é que agora estamos os dois a salvo. Aqui será difícil sermos atacados por tubarões.
Seguiremos viagem neste espaço abrigado onde ainda me custa pensar, e já sabemos
que este é um planeta capaz de me escutar.
A jovem agradece com um novo sorriso, e replica:
- Talvez isto que nos está a acontecer não seja bem verdade.
Repara como se movimenta este mundo, não achas estranho que uma entidade assim possa
fazer parte das coisas conhecidas? Seremos nós capazes de explicar um fenómeno como
este?
- Não vale a pena pensarmos dessa maneira. Nós não estamos
enganados. A vida é mesmo assim esta coisa muito estranha.
Tudo o que acontece no fundo do lago é inacreditável.
- Isto é estranho, muito estranho, tão estranho que só
pode mesmo ser verdade.
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