terça-feira, 3 de março de 2015

53 - RUÍNA



Os vivos e os mortos ajudaram à ruína da casa onde os pássaros aprenderam a pensar. As árvores que cercavam a propriedade tinham crescido fortes e as terras, que se encontravam enxutas, quedaram-se mudas por debaixo dos escombros.
Adelaide ainda fugiu a tempo de assistir a tudo. Ficou sem saber o que fazer, com as mãos tombadas, interrogando-se:
- E se também eu tivesse caído como ela? Estaria bem melhor, ali, entre os restos das suas paredes e telhados.
Álvaro não resistiu. A irmã sabia que ele tinha sido o responsável pelo estranho acontecimento. Foi ele quem retorceu e moldou o ar daquela casa,  e o modificou, a cada instante, através da doença que o fez sofrer. Lançou uma espécie de moléstia sobre aquelas paredes que depois rangeram como o soalho, como os ossos e o medo, que também tinha ossos e dentes e rangeu tal como os corpos, e sentiu tal como gente.
Aquela sexta-feira tinha adormecido chuvosa. Álvaro vestiu as suas melhores roupas, antes de se deitar, como se estivesse a preparar-se para viajar. Corajoso, respirou fundo e olhou, com atenção, para a cama que o viu nascer. As paredes velhas do quarto estremeceram várias vezes antes dele adormecer, com a humidade infiltrada em todo o lado. Ele já não sentia o corpo, só aquele lugar nas costas onde a dor o tolhia e toldava a alma com manchas sombrias. Queria sonhar com o mar, uma última vez, escutar o som da água a correr no ribeiro, sentir novamente o apelo das ondas do grande lago oceano onde se perdeu, tal como o pai e os irmãos. Ele foi o único que conseguiu regressar, e nunca falou dessa vitória a ninguém, muito menos á irmã Adelaide, apesar das suas muitas insistências. Apenas os montes e os vales por onde continuou a vaguear, conhecem, com minúcia, os pormenores do seu triunfo. O marinheiro também contou a sua ilustre façanha à magnólia que cresceu na zona mais recôndita do quintal onde gostava de contemplar a paisagem.

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